De volta à Rua Coimbra
Luiz Carvalho
Descobri a Rua Coimbra por acaso. Até me casar e morar no bairro Bresser, ao lado da estação de Metrô de mesmo nome, acreditava que aquele pedaço da zona leste era reduto de italianos. As raízes da minha esposa reafirmavam essa idéia. Filha de um napolitano com uma brasileira, neta de napolitano, minha então namorada morava no começo da Rua da Mooca –onde vivo hoje. Ela torcia para o Palmeiras, como heroicamente ainda faz, e mantinha a tradição de comer macarrão no almoço de todos os domingos.
Porém, numa noite nublada de sábado, quando procurava uma adega para comprar um garrafão de vinho, me perdi e fui surpreendido por homens e mulheres com feições indígenas num lugar onde os letreiros dos restaurantes são grafados em espanhol. Inicialmente, pensei, “caraca, andei tanto que saí em La Paz”, mas se tratava de um encontro da comunidade boliviana em São Paulo, que costuma ocupar as páginas de jornais apenas quando o assunto é trabalho escravo.
No último sábado, caminhei novamente entre os três quarteirões da mesma rua, dessa vez com um número bem menor de pessoas na feira que existe há um ano no coração da região do Bresser. Primeiro, porque cheguei três horas antes do pico da festa, que acontece por volta das sete da noite. Segundo, porque era mais um dia de comemoração no mês da independência da Bolívia, e muitos estavam no Memorial da América Latina.
Entre salões de cabeleleiros, vendedores de produtos típicos e computadores com acesso à Internet, improvisados nos fundos das lojas, os imigrantes tentam manter a memória viva.
Gente como Maria Montano fala pouco. Ela vive há três anos no Brasil, país para o qual mudou devido a falta de emprego e dificuldade de estudar na terra natal. Durante a semana trabalha numa confecção. Aos sábados, vende CDs de música folclórica, cumbia e salsa. O hitmaker, entre os discos de MP3 que organiza sobre uma tábua de madeira é Yuri Ortuño.
A poucos metros dela, Juan Carlos, Juan Carlos (não é erro de digitação, são dois Juan Carlos mesmo) e Jhonny jogam pebolim por R$ 0,15 a ficha. Cada uma dá direito a três bolas. Graças ao baixo custo, as mesas desse tipo de jogo se espalham pelas calçadas.
Resolvo parar em uma casa que vende material para confecção, especialmente linhas, distribuídas em carretéis no formato de cone. Lá, Joana Lopes me recebe. Desconfiada, ela tem mais perguntas a fazer do que eu. Tasco logo uma mentira e digo que a entrevista é parte de um trabalho para a universidade.
“Qual?” – ela pergunta.
Dessa vez sou quase honesto. “Universidade Santo Amaro”, onde um dia estudei.
“Ah, tá” – faz um ar de que não conhece. “Qual curso?”
“Jornalismo” – digo.
“Hummm” – murmura, sem grande simpatia.
Talvez fosse melhor dizer psicologia. Na minha área, especialmente nessa região, vale mais ser um amador do que um profissional em busca de outro furo de reportagem. Nós chegamos, denunciamos, os deixamos sem emprego e ameaçados de morte por colaborarem, involuntariamente, com uma matéria que alguém lerá e esquecerá assim que sair da frente do computador para ir ao banheiro.
Joana para por alguns segundos diante de um cartaz das Agulhas Orange, que ostenta a bandeira brasileira ao fundo. Diz que conheceu o Brasil por meio de estudantes universitários que fazem intercâmbio na Bolivia. Cala-se e, de repente, desaparece no fundo da loja. Reaparece com Luís Vasquez, Presidente da Associação de Moradores Bolivianos da Rua Coimbra (AMRC), com quem começo a conversar.
Tímido, ele sorri de canto de boca e quando tento fazer a primeira pergunta me interrompe e diz.
“Olha, me manda um e-mail que eu te respondo. A maior parte dos jornalistas só associa nossos irmãos à escravidão”, critica. Aceito seu pedido, mas, aos poucos recomeço o papo para quebrar o gelo.
Para ele, mesmo diante do trabalho degradante nas fábricas de roupas, é melhor imigrar do que ficar e enfrentar as desigualdades. A maioria do seu povo sai de zonas rurais como a parte de La Paz que faz divisa com o Peru. O presidente da AMRC me explica que a luta pela concorrência faz com que o valor dos salários diminua cada vez mais na região central de São Paulo. Cerca de somente 3% do valor final do produto chega até o empregado, que recebe por peça. Sem condições de pagar um lugar para morar e diante da necessidade de produzir cada vez mais, muitos vivem onde trabalham. Com o tempo, o salário se torna um prato de comida.
Os coreanos, que substituíram os judeus na região da 25 de março, agora são os chefes. Antes, faziam o que os bolivianos fazem. Num rompante de humor, Vasquez filosofa.
“Talvez um dia nós assumamos o posto dos coreanos e coloquemos os uruguaios no nosso lugar”.
Em alguns minutos recebo uma pequena aula de história. No trecho oriental do país de Luís Vasquez ficam as classes mais ricas e no Vale, de onde saiu o atual presidente, Evo Morales, os mais pobres. Na parte ocidental está a região do Altiplano. Assim como muitas vezes ouvimos por aqui, há uma onda separatista por lá, o desejo de implementar uma “higienização social”.
Migrantes e imigrantes são muito parecidos. No Brasil, basta substituir o Nordeste pelo Vale, o Oriente por São Paulo e o sotaque castelhano por expressões baianas, paraibanas, cearenses. O desejo de juntar dinheiro e voltar para a terra de origem é o mesmo. A ânsia por manter a cultura viva também.
Porém, há uma grande diferença quando se trata da capacidade de indignação.
“Aqui, o ônibus vai de R$ 2 para R$ 2,30 e ninguém faz nada. Na Bolívia, a passagem tem o mesmo preço há 10 anos e qualquer coisa é motivo para mobilização política”, observa.
Aos 21 anos, Cyndi Martinez Hurtado comanda uma das quatro agências que o pai, Hervin Gonzalo Hurtado mantém. A jovem, nascida em Belém do Pará, conta que Hurtado desembarcou por aqui há 33 anos. O avô de Cyndi tinha uma amante brasileira e resolveu raptar o filho e morar aqui. Porém, o romance acabou e o filho foi abandonado, aos sete anos. Hoje, além da loja na Rua Coimbra, a família possui uma unidade na Casa Verde Alta, outra no Pari e mais uma no Bom Retiro. Todos são bairros com um grande número de bolivianos, nacionalidade de todos os funcionários que auxiliam Cyndi, a filha mais velha de uma família de três irmãos. Sem nenhum traço dos ancestrais, a não ser a fluência na língua espanhola, ela oferece por R$ 0,70, o minuto, ligações para qualquer parte da Bolívia. Os clientes compram tíquetes e entram numa cabine transparente equipada com mesa, cadeira e velhos aparelhos telefônicos. Um computador controla o tempo.
Formada em administração, destaca que a discriminação é uma pedra no sapato de alguns povos que chegam ao Brasil, especialmente os sulamericanos.
“As crianças são as que mais sofrem. Como os pais passam a maior parte do tempo nas oficinas de costura, se dedicam pouco aos filhos. Muitos são alvos de brincadeiras cruéis porque freqüentam a escola com roupas rasgadas e sujas. No Orkut, já li pessoas escreverem que somos ‘japonegros’”, diz.
O próximo passo é cursar direito para poder ingressar na Polícia Federal. A idéia é ajudar os imigrantes com a regularização dos documentos, processo que, atualmente, demora até três anos para ser concluído.
Quando nos despedirmos, ela ainda me ensina um pouco sobre meu país.
“Você sabia que a Praia de Copacabana tem esse nome graças à Nossa Senhora de Copacabana, uma santa boliviana?”, pergunta. Eu não sabia.
Antes de entrar num dos restaurantes que vendem Chincarron de Chancho (receita que leva carne de porco), por R$ 10, tentei entrevistar um cabeleleiro, mas todos os salões estavam lotados. Perguntei a um dos funcionários se o dono poderia me atender e ele respondeu, “não, está peruqueando”.
No final da rua, Fernando Coronado entrega panfletos diante da Peluqueria Los Andes. Há cinco anos no Brasil, conta que é casado com uma conterrânea e tem dois filhos brasileiros. No lugar que ajuda a divulgar, mais de 80% da clientela possui as mesmas raízes de Coronado.
Um amplificador conectado ao computador aumenta o alcance da rádio Chacaitaya, que o rapaz sintoniza via internet. Talvez ele não saiba, mas o que faz explica o termo globalização muito melhor do que qualquer especialista dos cadernos de economia dos grandes jornais da cidade.
terça-feira, 14 de agosto de 2007
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3 comentários:
Não sabia nem da metade de tudo que se passa aonde ( perto ) cresci e moramops hj...
Já não é mais novidade pra mim os textos que é sempre publicado no seu blog...MARAVILHOSOS!!!
PARABÉNS meu jornalista , sou muito , mais muito orgulhosa de vc!!!
Adorei a matéria, fascinante!!!
Fabiana
é, meu caro, por isso que dizia na facu que era seu fã...isso, sim, é jornalismo de verdade..parabéns!!!!!!!!!
Pra variar, gostei bastante. hehe
Bjs,
Camila
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