Romão Gomes
Luiz Carvalho
A tranqüila Avenida Tenente Júlio Prado Neves nasce na Nova Cantareira, zona norte de São Paulo. A patente da via já entrega o que está por vir. Entre o canil da polícia e a associação dos oficiais da corporação fica o Presídio Militar Romão Gomes. À primeira vista, não fosse o respeito à hierarquia, expresso nas continências e na posição de sentido dos presos, que só se desfaz após o comando do capitão Walter Luco Júnior, poderia confundir o lugar com uma colônia de férias.
Logo após a portaria, dentro da qual os soldados sintonizam a Kiss FM, há uma praça que recebeu o nome de dignidade humana. Nenhuma porta se abre sem que a anterior esteja fechada. No armário de número 13 deixo meu celular, levo a chave e caminho rumo ao pátio onde os internos, perfilados e uniformizados, aguardam autorização para seguirem os respectivos caminhos. Alguns cumprem regime fechado e voltam para a cela ou seguem para o trabalho no próprio complexo. Outros já ingressaram no semi-aberto e partem para um emprego fora dali.
Não sou o único visitante. Um ônibus repleto de alunos do curso de formação de soldados também estaciona logo após parar meu carro. A visita ao Romão faz parte da grade curricular. Trata-se de uma forma de mostrar o que acontece com quem recebe treinamento para servir à segurança pública e comete desvios em suas funções. Porém, “punição com respeito, independente da pena”, conforme observa o Major Antonio Spinieli, comandante interino do presídio e responsável por liberar minha entrada na casa.
Sob o toque da batida militar as atividades começam, por volta das nove, inclusive para os membros da banda de 12 internos.
Ala VIP
Antes que eu comece a enfileirar perguntas, Spinieli me leva para tomar café da manhã com o comando. A mesa inclui frutas e pães franceses feitos por presos como José (*), 44. Ele cumpre pena de quatro anos por homicídio. Está no Romão Gomes desde 2005, e depois de um curso com Rogério Shimura, chefe de cozinha que costuma freqüentar programas de televisão, aprendeu a arte da confeitaria. Por dia, fabrica 800 pães, também distribuídos aos funcionários do canil, do COE (Comando de Operações Especiais) e aos bombeiros.
Após a parada, passo pelo corredor da “Ala VIP”. À direita ficam as salas do major e do diretor do presídio. À esquerda a do capitão, toda a parte administrativa e o refeitório da cúpula. Nas paredes, frases para elevar a auto-estima, fotografias e o quadro de policiais do mês. Nessa manhã de quinta-feira, restou a Luco, homem esguio, de calvície acentuada, me apresentar as dependências.
De fala calma e articulada, o capitão saca um dos inúmeros cigarros que fuma durante a entrevista. Na estante ao lado da mesa onde mantém um computador com tela de cristal líquido ficam brinquedos como um navio pirata, um mago, uma guilhotina com um dos bonecos decapitados e uma vara de pescar que usa nos finais de semana com os filhos. “No começo é muito difícil trabalhar aqui porque sempre encontramos companheiros com quem estivemos”, fala.
Sete reais o quilo
A laborterapia ou terapia ocupacional, sob o comando do capitão Edson Gonçalves, é o segundo passo do programa de gerenciamento do preso. Caso apresente bom comportamento e já tenha cumprido ao menos quatro meses do período de reclusão, o detento passa para o segundo estágio. Entenda bom comportamento como apego à alguma religião, à família e o civismo. “Se recebe visita tem algo a perder e a religiosidade pode mudar o coração dele”, acredita Gonçalves. A cada dia o culto de uma crença diferente acontece. De protestantes a reikianos, todos possuem um espaço para reuniões. Para os católicos e evangélicos, uma igreja espaçosa, decorada com papéis tingidos por anilina amarela, pendurados na parede. Aos adeptos da umbanda, que realizam o ritual às terças-feiras, um terreno nos fundos, onde o atabaque, o fumo e os cantos são liberados. Porém, se a entidade quiser cachaça vai ter que procurar em outro terreiro.
Na segunda fase do processo o interno deixa a cela e segue para alojamentos. O número de visitas aumenta para quatro, a ala íntima para uma hora e além dos familiares, já pode receber amigos. A principal mudança, porém, é a possibilidade de trabalhar internamente. Cada três dias de labuta abatem um na pena. As opções vão desde a fabricação de casinhas de cachorro, em madeira ou plástico, até produção de serviços voltados à comunidade, como lava-rápido e tapeçaria. Existem ainda aqueles selecionados para lidar com a terra e com animais. Neste último grupo está João (*), 55, 25 anos de PM. Ele cuida do “berçário”. Planta em espécies de bandejas os produtos de uma horta, que fica na parte de trás do Romão. Enquanto enxuga o suor da testa, conta que se aposentou há sete anos, em Araçatuba, cidade a 524 km de São Paulo. A conversa termina quando lhe pergunto o crime que cometeu. “Ih, melhor nem falar”. Ele cumpre pena por estupro.
Neste lugar, homicidas, estupradores, latrocidas convivem sem distinção. A definição das celas ocorre de acordo com o perfil psicológico e não com o crime. Sempre identificados com um crachá, nenhum dos presos pode ser chamado por apelido ou pelo número. Normas da única detenção no mundo que ostenta o ISO 9001, um certificado de gestão da qualidade obtido em 2003. Basicamente, isso significa que da recepção à confecção do alvará de soltura, todo o processo dentro do sistema é descrito e planejado.
Tal qual João, Jerônimo (*), 50, casado, pai de quatro filhas, condenado a nove anos por homicídio passa oito horas num lugar que lembra o ambiente de uma fazenda. Do próprio humor do PM ao rancho onde cozinha feijão num velho fogão, tudo tem um ar caipira. A missão de Jerônimo é cuidar dos porcos e das aves. De quebra, toma conta também de Macalé, um labrador preto “nascido e criado em regime-fechado”, como diz. O cão se assusta com nossa presença, late quando entramos nos chiqueiros e o preso logo comenta, “ele pensa que vocês são da corregedoria”. O pai de Macalé, Pedro Luís, também mora no presídio, mas vive no “semi-aberto”. Você sabia que a gestação de uma porca dura quatro meses? Você sabia que Cachaça, feliz pai de 13 leitões, também pode cuidar da segurança, tão bem ou até melhor que um cão treinado? Pois é, aprendi naquele dia. A suinocultura é parte da renda do lugar. O quilo da lingüiça custa R$ 7, mesmo preço do quilo do lombo e do pernil.
No terceiro estágio do regime fechado o tempo de ala íntima passa para duas horas e o número de visitantes permanece o mesmo. Com exceção das crianças até 14 anos, todos passam por revistas íntimas. Os cabelos precisam ficar soltos e as mulheres devem se abaixar, de pernas abertas, nuas, por duas vezes para mostrar que não carregam nada dentro da vagina. As fraldas dos bebês são trocadas, diante de alguém do complexo penitenciário que acompanha o procedimento. Enlatados, vidros e caixas não entram. Cigarro pode, mas nunca em pacote, para não ser usado como moeda de troca.
Sem mofo
O primeiro passo e, imagino, o mais difícil para o policial militar condenado deve ser entrar na cela e deixar de ser seta para se transformar em alvo. Não há superlotação e nem sujeira nos espaços onde, inicialmente, os internos passam 22 horas. Não há cheiro de mofo, conforme observa o capitão. Mas há medo nos olhos dos novatos. Aqui acaba o clima de clube de campo. Os espaços de seis por seis metros abrigam, em média, 12 pessoas divididas em treliches. As camas levam os nomes dos internos, assim como os armários que não tem lugar para trancas e normalmente servem de suporte para aparelhos de televisão. O banheiro, mais ou menos do tamanho do quarto do meu apartamento, também está limpo. Nessa ala fica ainda uma espécie de solitária, aí sim, um pouco menor, do tamanho da cozinha lá de casa, sem espaço para TV, somente com beliche, privada e pia. Como em presídios “comuns”, no setor há uma pequena quadra, sobre a qual passa o varal onde as roupas ficam penduradas. Dois carcereiros, em turnos de 12 por 36 horas garantem a segurança. A função fica sempre a cargo de cabos, PMs em início de carreira como Luiz Antônio Pereira, natural de Guarantiguetá. Dois anos de polícia, um de carceragem.
O trabalho de Pereira é facilitado pela característica do presídio. Não vale a pena fugir, principalmente porque uma fuga significa a transferência para uma penitenciária comum. Trocariam a tranqüilidade pela tensão de viverem como cordeiros no meio de uma alcatéia. Por isso não existem muros, somente frágeis cercas e câmeras espalhadas por todos os lados.
Foi a necessidade de separar os militares dos presos “civis” que deu origem ao Presídio Militar Romão Gomes, em 1927. Contudo, apenas a partir de 1949 ele passou a funcionar na Serra da Cantareira.
Joana faz de conta
No total, são 236 pessoas. A mais velha tem 73 anos. São 180 em regime fechado e 56 no semi-aberto. Sete são mulheres. Joana (*), 32, viúva, é uma delas. Aos 24 anos realizou um sonho de infância: se tornar policial, igual à irmã e à mãe, policiais civis. Aos 30, a trajetória foi interrompida graças a um crime passional. Já cumpriu dois anos e oito meses na ala feminina. Têm mais uma década pela frente.
Ela está dentro das estatísticas. Homicídio corresponde a 84 dos casos de condenação no Romão, seguido por roubo. Os presos que recebem a sentença de até dois anos podem voltar às atividades. Para os condenados a um período superior resta o caminho da exoneração.
A mulher do interior paulista, atualmente em regime semi-aberto, prefere imaginar que está aquartelada. Assim consegue aplacar a saudade dos três filhos que moram com a mãe, também no interior. Conversa com as crianças por carta e telefone, mas ver mesmo, devido à distância, somente a cada dois meses, nos períodos das saídas temporárias. “O que você vai fazer quando sair daqui?” “Quero conseguir uma bolsa para um curso de auxiliar de enfermagem e voltar ao mercado de trabalho”, planeja. Foi o que sobrou.
Osvaldo (*), 43, tem duas coisas em comum com Joana. Primeiro, realizou o sonho de criança e se tornou militar, da mesma forma que o tio, coronel do exército. Segundo, finge que está no quartel durante a semana e um domingo por mês, quando vê a mulher e os dois filhos, tenta acreditar que está em casa. Tudo para preencher o vazio. A parte mais difícil foi ficar distante da esposa no período da gestação do caçula, depois que ela engravidou, entre um e outro encontro durante as visitas íntimas.
As semelhanças param por aí. Condenado a 26 anos e 8 meses por latrocínio, ao contrário da companheira de profissão, ingressará com pedido de reintegração na Justiça Militar. Se não for possível, quer ganhar a vida como desenhista profissional, função que desempenhava antes de começar a servir o Estado, 13 anos atrás.
Abaré está com gota
No último ato, o diretor do presídio, Tenente Coronel Abaré Vaz Lima, diz que consegue tratar colegas, com os quais conviveu um dia, como qualquer interno. “Quando ele entra aqui se torna um preso comum. Inclusive, temos três homens que trabalharam comigo e com os quais não mantenho conversa social”, decreta.
Eis um homem que sabe separar os lados pessoal e profissional, irrepreensível, com um ar austero, atrás do bigode negro. Ao contrário dos profissionais da área administrativa, como Luco, que vestem camiseta branca e calça de agasalho azul, o tenente está fardado. Por fim, se desculpa. “Não pude ser um bom anfitrião. Esta perna...”, e aponta para o joelho esquerdo. Ele manca. Acha que é gota. “Talvez, culpa dos cigarros, da cafeína...” Cigarro e café fazem mesmo mal à saúde. ■
(*) Para preservar a identidade dos internos, os nomes com asterisco são fictícios.
sábado, 1 de setembro de 2007
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Papa x Nascimento
Luiz Carvalho
Já são mais de dez da noite, quando Hugo Papa e Fábio Nascimento sobem ao ringue, montado sob o viaduto Alcântara Machado. O primeiro veste camiseta regata cinza, calção preto e sapatilha azul. O segundo, uma camiseta vermelha com o número 93, calção preto e sapatilha vermelha.
A noite é de final. Papa e Nascimento se enfrentam por um troféu que simboliza o título de campeão amador dos super-pesados. Na prática, a liga não existe, ao menos não ali, mas isso não faz a menor diferença, tanto para os boxeadores quanto para o público que se acomoda nas cadeiras de plástico. Como em disputas profissionais existem juízes, paramédicos e uma ambulância.
Pela primeira vez eu assisto, ao vivo, a uma luta de boxe. Como ex-balconista de boteco já vi pessoas brigarem armadas com cacos de garrafa e tacos de sinuca, mas observar dois caras trocarem porrada, assim, tão próximos, numa mistura de fúria e prazer, parece muito mais violento e excitante. O som de cada soco na face oposta se valoriza graças às luvas e às máscaras de proteção.
Além das lâmpadas instaladas sobre o tablado, uma espécie de semáforo, pendurado no teto, com duas luzes amarelas acesas, dá um ar glamuroso ao espetáculo.
Entre um round e outro, Luiz Gozanga, o DJ, comanda o som com músicas que ele não sabe de quem são.“O que o senhor toca aí?”“Ah, sei lá, coisa agitada” – ele responde.No porta CDs do senhor de bigode e cabelos brancos reconheço clássicos da black music da década de 1970, como Marvin Gaye e James Brown. Em cima do aparelho de som, claro, a trilha que não poderia faltar: “Rocky, o lutador”.
A arena é um dos núcleos do programa de Garrido. Você já deve ter ouvido falar nesse cara. Dezenas de programas de TV já o entrevistaram, graças à academia que ele mantém no Viaduto do Café, na Bela Vista.
Agora ela já possuí equipamentos profissionais, mas sua fama cresceu porque usava a criatividade para produzir materiais de treinamento. Para levantar peso, os alunos utilizavam barras de ferro com latas cheias de cimento, nas pontas. Pneus pendurados em cordas faziam as vezes daqueles sacos que servem para aprimorar os socos. Como a ponte onde treinava os pupilos passa por reformas, a prefeitura cedeu um outro espaço para que dê continuidade ao trabalho.
Apanhar e bater
De volta ao confronto, Nascimento, 110 quilos, recebe instruções da equipe formada por três pessoas. Uma delas funciona como uma espécie de assistente. Ajuda a colocar a luva, leva água, faz curativos e coloca o protetor bucal. As outras duas, além de cuidarem das instruções técnicas, dividem-se entre anotar os pontos fracos do adversário e abanar o próprio lutador. Na outra ponta, Papa, na altura de seus 124 quilos, recebe tratamento idêntico.
São três rounds e logo após o gongo soar já é possível perceber que a vida do rapaz de camiseta cinza não será fácil. Com apoio da platéia, Hugo Papa dispara diretos e cruzados desnorteados. Ambos estão nitidamente acima do peso e praticam o jogo de apanhar e bater, sem estratégia nenhuma. Mas o homem da camiseta vermelha parece ter maior vigor físico e objetividade.A superioridade de Papa continua no 2.º round. A capacidade de Fábio Nascimento em se manter em pé é impressionante. No terceiro assalto, a grande preocupação dele parece ser evitar o nocaute. Consegue, mesmo após ser levado às cordas por diversas vezes.
Para todos os expectadores e para mim parece óbvio: Papa venceu.
Porém, um “pequeno” imprevisto. O árbitro, Walter Andrade, tira as luvas do suposto vencedor e o desclassifica por usar bandagem cruzada entre os dedos.
Quem anuncia o resultado no microfone é Garrido, elegantemente vestido com terno e calça social cinza. Cabelo black power, cavanhaque, sob protestos afirma, “regras são regras e devem ser respeitadas.”
Os integrantes da equipe do perdedor reclamam, tentam dialogar, sorriem ironicamente, mas não há mais o que fazer.
Pergunto a Andrade, membro da confederação brasileira de arbitragem da categoria o motivo da desclassificação. Ele explica que a suposta artimanha não é permitida entre amadores porque aumenta a potência dos golpes.Insatisfeito, Papa se prepara para ir embora na Van que o trouxe de Mogi-Guaçú. Segue ao lado do treinador, Fernando Fumaça, lutador profissional da categoria Super-Pena, da mãe, dona Otília, do primo e da sobrinha. “O resultado foi injusto. Em todas as lutas eu amarrei a faixa da mesma forma e nunca disseram nada. Agora, só porque vencemos um atleta da casa eles agem dessa forma”, diz Fumaça. Explico: Fábio Nascimento treina todos os dias com o Garrido, ao contrário de Papa, que não faz parte da equipe do dono do núcleo.
Do outro lado, já na rua escura paralela ao local do combate, o vencedor é só alegria. Caminha ao lado dos amigos com o imenso troféu nas mãos, rumo à estação de trem onde embarca para Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo.
Aluno desde o início do ano da academia sob a ponte na Mooca, trabalhava como segurança de um bingo durante o dia e treinava, de segunda à sexta, no período da tarde. Sem emprego, ironicamente, por um lado tem mais tempo livre e por outro precisa economizar para conseguir juntar dinheiro e pagar a condução até o local do treino.
Ah, o amor. Depois de uma noite inteira de socos, é hora de nos tornarmos românticos.
Sem expectadores, cinegrafistas e o fotógrafo que ficou irritado ao sentenciar que sou antiético por tirar fotos e escrever matérias, ocupando, assim, seu lugar no mercado de trabalho, o dono da festa se senta ao lado da mulher, Cora Garrido. Negra, como ele, se mantém em silêncio atrás dos óculos, enquanto o marido sorri e dissimula quando trato de qualquer assunto sobre a vida particular de ambos. Se recusa a dizer onde a família mora e diz preferir falar do projeto, atrás da mesa de escritório equipada com um computador no qual estão armazenados os dados das pessoas ligadas ao programa que comanda. Ao nosso lado, sofás, um fogão e uma mesa de madeira são parte da decoração dos "ambientes" da "casa".
Garrido conheceu Cora debaixo de um viaduto. Na época trabalhava como segurança e tomava conta de algumas crianças que viviam na Praça Ramos. Morava nas calçadas da cidade.
“Numa noite chuvosa, ela – a esposa – apareceu e me viu todo sujo, com uma enxada na mão e chapéu de Sassá Mutema. Eu sempre pedia ajuda a Deus e um dia ele me atendeu. Temos os mesmos ideais”, lembra, antes de destacar a importância da mão solidária da parceira no início de uma academia sob a ponte.
Olho ao redor e vejo faixas com nomes de políticos.“Essas pessoas que tem os nomes estampados nas grades te apóiam?”“Tem gente que tira proveito onde não deve. Aquele vereador – aponta para uma das faixas – contribuiu financeiramente para a realização de um torneio, mas eu disse ao jornalista que pregou isso aqui que campanha política fora da época de eleição é crime. Se alguém quiser uma soma com o Garrido, tenho um preço, mas vamos discutir fora daqui”. Ninguém é inocente em São Paulo. Nem Garrido, nem eu.
Luiz Carvalho
Já são mais de dez da noite, quando Hugo Papa e Fábio Nascimento sobem ao ringue, montado sob o viaduto Alcântara Machado. O primeiro veste camiseta regata cinza, calção preto e sapatilha azul. O segundo, uma camiseta vermelha com o número 93, calção preto e sapatilha vermelha.
A noite é de final. Papa e Nascimento se enfrentam por um troféu que simboliza o título de campeão amador dos super-pesados. Na prática, a liga não existe, ao menos não ali, mas isso não faz a menor diferença, tanto para os boxeadores quanto para o público que se acomoda nas cadeiras de plástico. Como em disputas profissionais existem juízes, paramédicos e uma ambulância.
Pela primeira vez eu assisto, ao vivo, a uma luta de boxe. Como ex-balconista de boteco já vi pessoas brigarem armadas com cacos de garrafa e tacos de sinuca, mas observar dois caras trocarem porrada, assim, tão próximos, numa mistura de fúria e prazer, parece muito mais violento e excitante. O som de cada soco na face oposta se valoriza graças às luvas e às máscaras de proteção.
Além das lâmpadas instaladas sobre o tablado, uma espécie de semáforo, pendurado no teto, com duas luzes amarelas acesas, dá um ar glamuroso ao espetáculo.
Entre um round e outro, Luiz Gozanga, o DJ, comanda o som com músicas que ele não sabe de quem são.“O que o senhor toca aí?”“Ah, sei lá, coisa agitada” – ele responde.No porta CDs do senhor de bigode e cabelos brancos reconheço clássicos da black music da década de 1970, como Marvin Gaye e James Brown. Em cima do aparelho de som, claro, a trilha que não poderia faltar: “Rocky, o lutador”.
A arena é um dos núcleos do programa de Garrido. Você já deve ter ouvido falar nesse cara. Dezenas de programas de TV já o entrevistaram, graças à academia que ele mantém no Viaduto do Café, na Bela Vista.
Agora ela já possuí equipamentos profissionais, mas sua fama cresceu porque usava a criatividade para produzir materiais de treinamento. Para levantar peso, os alunos utilizavam barras de ferro com latas cheias de cimento, nas pontas. Pneus pendurados em cordas faziam as vezes daqueles sacos que servem para aprimorar os socos. Como a ponte onde treinava os pupilos passa por reformas, a prefeitura cedeu um outro espaço para que dê continuidade ao trabalho.
Apanhar e bater
De volta ao confronto, Nascimento, 110 quilos, recebe instruções da equipe formada por três pessoas. Uma delas funciona como uma espécie de assistente. Ajuda a colocar a luva, leva água, faz curativos e coloca o protetor bucal. As outras duas, além de cuidarem das instruções técnicas, dividem-se entre anotar os pontos fracos do adversário e abanar o próprio lutador. Na outra ponta, Papa, na altura de seus 124 quilos, recebe tratamento idêntico.
São três rounds e logo após o gongo soar já é possível perceber que a vida do rapaz de camiseta cinza não será fácil. Com apoio da platéia, Hugo Papa dispara diretos e cruzados desnorteados. Ambos estão nitidamente acima do peso e praticam o jogo de apanhar e bater, sem estratégia nenhuma. Mas o homem da camiseta vermelha parece ter maior vigor físico e objetividade.A superioridade de Papa continua no 2.º round. A capacidade de Fábio Nascimento em se manter em pé é impressionante. No terceiro assalto, a grande preocupação dele parece ser evitar o nocaute. Consegue, mesmo após ser levado às cordas por diversas vezes.
Para todos os expectadores e para mim parece óbvio: Papa venceu.
Porém, um “pequeno” imprevisto. O árbitro, Walter Andrade, tira as luvas do suposto vencedor e o desclassifica por usar bandagem cruzada entre os dedos.
Quem anuncia o resultado no microfone é Garrido, elegantemente vestido com terno e calça social cinza. Cabelo black power, cavanhaque, sob protestos afirma, “regras são regras e devem ser respeitadas.”
Os integrantes da equipe do perdedor reclamam, tentam dialogar, sorriem ironicamente, mas não há mais o que fazer.
Pergunto a Andrade, membro da confederação brasileira de arbitragem da categoria o motivo da desclassificação. Ele explica que a suposta artimanha não é permitida entre amadores porque aumenta a potência dos golpes.Insatisfeito, Papa se prepara para ir embora na Van que o trouxe de Mogi-Guaçú. Segue ao lado do treinador, Fernando Fumaça, lutador profissional da categoria Super-Pena, da mãe, dona Otília, do primo e da sobrinha. “O resultado foi injusto. Em todas as lutas eu amarrei a faixa da mesma forma e nunca disseram nada. Agora, só porque vencemos um atleta da casa eles agem dessa forma”, diz Fumaça. Explico: Fábio Nascimento treina todos os dias com o Garrido, ao contrário de Papa, que não faz parte da equipe do dono do núcleo.
Do outro lado, já na rua escura paralela ao local do combate, o vencedor é só alegria. Caminha ao lado dos amigos com o imenso troféu nas mãos, rumo à estação de trem onde embarca para Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo.
Aluno desde o início do ano da academia sob a ponte na Mooca, trabalhava como segurança de um bingo durante o dia e treinava, de segunda à sexta, no período da tarde. Sem emprego, ironicamente, por um lado tem mais tempo livre e por outro precisa economizar para conseguir juntar dinheiro e pagar a condução até o local do treino.
Ah, o amor. Depois de uma noite inteira de socos, é hora de nos tornarmos românticos.
Sem expectadores, cinegrafistas e o fotógrafo que ficou irritado ao sentenciar que sou antiético por tirar fotos e escrever matérias, ocupando, assim, seu lugar no mercado de trabalho, o dono da festa se senta ao lado da mulher, Cora Garrido. Negra, como ele, se mantém em silêncio atrás dos óculos, enquanto o marido sorri e dissimula quando trato de qualquer assunto sobre a vida particular de ambos. Se recusa a dizer onde a família mora e diz preferir falar do projeto, atrás da mesa de escritório equipada com um computador no qual estão armazenados os dados das pessoas ligadas ao programa que comanda. Ao nosso lado, sofás, um fogão e uma mesa de madeira são parte da decoração dos "ambientes" da "casa".
Garrido conheceu Cora debaixo de um viaduto. Na época trabalhava como segurança e tomava conta de algumas crianças que viviam na Praça Ramos. Morava nas calçadas da cidade.
“Numa noite chuvosa, ela – a esposa – apareceu e me viu todo sujo, com uma enxada na mão e chapéu de Sassá Mutema. Eu sempre pedia ajuda a Deus e um dia ele me atendeu. Temos os mesmos ideais”, lembra, antes de destacar a importância da mão solidária da parceira no início de uma academia sob a ponte.
Olho ao redor e vejo faixas com nomes de políticos.“Essas pessoas que tem os nomes estampados nas grades te apóiam?”“Tem gente que tira proveito onde não deve. Aquele vereador – aponta para uma das faixas – contribuiu financeiramente para a realização de um torneio, mas eu disse ao jornalista que pregou isso aqui que campanha política fora da época de eleição é crime. Se alguém quiser uma soma com o Garrido, tenho um preço, mas vamos discutir fora daqui”. Ninguém é inocente em São Paulo. Nem Garrido, nem eu.
terça-feira, 14 de agosto de 2007
De volta à Rua Coimbra
Luiz Carvalho
Descobri a Rua Coimbra por acaso. Até me casar e morar no bairro Bresser, ao lado da estação de Metrô de mesmo nome, acreditava que aquele pedaço da zona leste era reduto de italianos. As raízes da minha esposa reafirmavam essa idéia. Filha de um napolitano com uma brasileira, neta de napolitano, minha então namorada morava no começo da Rua da Mooca –onde vivo hoje. Ela torcia para o Palmeiras, como heroicamente ainda faz, e mantinha a tradição de comer macarrão no almoço de todos os domingos.
Porém, numa noite nublada de sábado, quando procurava uma adega para comprar um garrafão de vinho, me perdi e fui surpreendido por homens e mulheres com feições indígenas num lugar onde os letreiros dos restaurantes são grafados em espanhol. Inicialmente, pensei, “caraca, andei tanto que saí em La Paz”, mas se tratava de um encontro da comunidade boliviana em São Paulo, que costuma ocupar as páginas de jornais apenas quando o assunto é trabalho escravo.
No último sábado, caminhei novamente entre os três quarteirões da mesma rua, dessa vez com um número bem menor de pessoas na feira que existe há um ano no coração da região do Bresser. Primeiro, porque cheguei três horas antes do pico da festa, que acontece por volta das sete da noite. Segundo, porque era mais um dia de comemoração no mês da independência da Bolívia, e muitos estavam no Memorial da América Latina.
Entre salões de cabeleleiros, vendedores de produtos típicos e computadores com acesso à Internet, improvisados nos fundos das lojas, os imigrantes tentam manter a memória viva.
Gente como Maria Montano fala pouco. Ela vive há três anos no Brasil, país para o qual mudou devido a falta de emprego e dificuldade de estudar na terra natal. Durante a semana trabalha numa confecção. Aos sábados, vende CDs de música folclórica, cumbia e salsa. O hitmaker, entre os discos de MP3 que organiza sobre uma tábua de madeira é Yuri Ortuño.
A poucos metros dela, Juan Carlos, Juan Carlos (não é erro de digitação, são dois Juan Carlos mesmo) e Jhonny jogam pebolim por R$ 0,15 a ficha. Cada uma dá direito a três bolas. Graças ao baixo custo, as mesas desse tipo de jogo se espalham pelas calçadas.
Resolvo parar em uma casa que vende material para confecção, especialmente linhas, distribuídas em carretéis no formato de cone. Lá, Joana Lopes me recebe. Desconfiada, ela tem mais perguntas a fazer do que eu. Tasco logo uma mentira e digo que a entrevista é parte de um trabalho para a universidade.
“Qual?” – ela pergunta.
Dessa vez sou quase honesto. “Universidade Santo Amaro”, onde um dia estudei.
“Ah, tá” – faz um ar de que não conhece. “Qual curso?”
“Jornalismo” – digo.
“Hummm” – murmura, sem grande simpatia.
Talvez fosse melhor dizer psicologia. Na minha área, especialmente nessa região, vale mais ser um amador do que um profissional em busca de outro furo de reportagem. Nós chegamos, denunciamos, os deixamos sem emprego e ameaçados de morte por colaborarem, involuntariamente, com uma matéria que alguém lerá e esquecerá assim que sair da frente do computador para ir ao banheiro.
Joana para por alguns segundos diante de um cartaz das Agulhas Orange, que ostenta a bandeira brasileira ao fundo. Diz que conheceu o Brasil por meio de estudantes universitários que fazem intercâmbio na Bolivia. Cala-se e, de repente, desaparece no fundo da loja. Reaparece com Luís Vasquez, Presidente da Associação de Moradores Bolivianos da Rua Coimbra (AMRC), com quem começo a conversar.
Tímido, ele sorri de canto de boca e quando tento fazer a primeira pergunta me interrompe e diz.
“Olha, me manda um e-mail que eu te respondo. A maior parte dos jornalistas só associa nossos irmãos à escravidão”, critica. Aceito seu pedido, mas, aos poucos recomeço o papo para quebrar o gelo.
Para ele, mesmo diante do trabalho degradante nas fábricas de roupas, é melhor imigrar do que ficar e enfrentar as desigualdades. A maioria do seu povo sai de zonas rurais como a parte de La Paz que faz divisa com o Peru. O presidente da AMRC me explica que a luta pela concorrência faz com que o valor dos salários diminua cada vez mais na região central de São Paulo. Cerca de somente 3% do valor final do produto chega até o empregado, que recebe por peça. Sem condições de pagar um lugar para morar e diante da necessidade de produzir cada vez mais, muitos vivem onde trabalham. Com o tempo, o salário se torna um prato de comida.
Os coreanos, que substituíram os judeus na região da 25 de março, agora são os chefes. Antes, faziam o que os bolivianos fazem. Num rompante de humor, Vasquez filosofa.
“Talvez um dia nós assumamos o posto dos coreanos e coloquemos os uruguaios no nosso lugar”.
Em alguns minutos recebo uma pequena aula de história. No trecho oriental do país de Luís Vasquez ficam as classes mais ricas e no Vale, de onde saiu o atual presidente, Evo Morales, os mais pobres. Na parte ocidental está a região do Altiplano. Assim como muitas vezes ouvimos por aqui, há uma onda separatista por lá, o desejo de implementar uma “higienização social”.
Migrantes e imigrantes são muito parecidos. No Brasil, basta substituir o Nordeste pelo Vale, o Oriente por São Paulo e o sotaque castelhano por expressões baianas, paraibanas, cearenses. O desejo de juntar dinheiro e voltar para a terra de origem é o mesmo. A ânsia por manter a cultura viva também.
Porém, há uma grande diferença quando se trata da capacidade de indignação.
“Aqui, o ônibus vai de R$ 2 para R$ 2,30 e ninguém faz nada. Na Bolívia, a passagem tem o mesmo preço há 10 anos e qualquer coisa é motivo para mobilização política”, observa.
Aos 21 anos, Cyndi Martinez Hurtado comanda uma das quatro agências que o pai, Hervin Gonzalo Hurtado mantém. A jovem, nascida em Belém do Pará, conta que Hurtado desembarcou por aqui há 33 anos. O avô de Cyndi tinha uma amante brasileira e resolveu raptar o filho e morar aqui. Porém, o romance acabou e o filho foi abandonado, aos sete anos. Hoje, além da loja na Rua Coimbra, a família possui uma unidade na Casa Verde Alta, outra no Pari e mais uma no Bom Retiro. Todos são bairros com um grande número de bolivianos, nacionalidade de todos os funcionários que auxiliam Cyndi, a filha mais velha de uma família de três irmãos. Sem nenhum traço dos ancestrais, a não ser a fluência na língua espanhola, ela oferece por R$ 0,70, o minuto, ligações para qualquer parte da Bolívia. Os clientes compram tíquetes e entram numa cabine transparente equipada com mesa, cadeira e velhos aparelhos telefônicos. Um computador controla o tempo.
Formada em administração, destaca que a discriminação é uma pedra no sapato de alguns povos que chegam ao Brasil, especialmente os sulamericanos.
“As crianças são as que mais sofrem. Como os pais passam a maior parte do tempo nas oficinas de costura, se dedicam pouco aos filhos. Muitos são alvos de brincadeiras cruéis porque freqüentam a escola com roupas rasgadas e sujas. No Orkut, já li pessoas escreverem que somos ‘japonegros’”, diz.
O próximo passo é cursar direito para poder ingressar na Polícia Federal. A idéia é ajudar os imigrantes com a regularização dos documentos, processo que, atualmente, demora até três anos para ser concluído.
Quando nos despedirmos, ela ainda me ensina um pouco sobre meu país.
“Você sabia que a Praia de Copacabana tem esse nome graças à Nossa Senhora de Copacabana, uma santa boliviana?”, pergunta. Eu não sabia.
Antes de entrar num dos restaurantes que vendem Chincarron de Chancho (receita que leva carne de porco), por R$ 10, tentei entrevistar um cabeleleiro, mas todos os salões estavam lotados. Perguntei a um dos funcionários se o dono poderia me atender e ele respondeu, “não, está peruqueando”.
No final da rua, Fernando Coronado entrega panfletos diante da Peluqueria Los Andes. Há cinco anos no Brasil, conta que é casado com uma conterrânea e tem dois filhos brasileiros. No lugar que ajuda a divulgar, mais de 80% da clientela possui as mesmas raízes de Coronado.
Um amplificador conectado ao computador aumenta o alcance da rádio Chacaitaya, que o rapaz sintoniza via internet. Talvez ele não saiba, mas o que faz explica o termo globalização muito melhor do que qualquer especialista dos cadernos de economia dos grandes jornais da cidade.
Luiz Carvalho
Descobri a Rua Coimbra por acaso. Até me casar e morar no bairro Bresser, ao lado da estação de Metrô de mesmo nome, acreditava que aquele pedaço da zona leste era reduto de italianos. As raízes da minha esposa reafirmavam essa idéia. Filha de um napolitano com uma brasileira, neta de napolitano, minha então namorada morava no começo da Rua da Mooca –onde vivo hoje. Ela torcia para o Palmeiras, como heroicamente ainda faz, e mantinha a tradição de comer macarrão no almoço de todos os domingos.
Porém, numa noite nublada de sábado, quando procurava uma adega para comprar um garrafão de vinho, me perdi e fui surpreendido por homens e mulheres com feições indígenas num lugar onde os letreiros dos restaurantes são grafados em espanhol. Inicialmente, pensei, “caraca, andei tanto que saí em La Paz”, mas se tratava de um encontro da comunidade boliviana em São Paulo, que costuma ocupar as páginas de jornais apenas quando o assunto é trabalho escravo.
No último sábado, caminhei novamente entre os três quarteirões da mesma rua, dessa vez com um número bem menor de pessoas na feira que existe há um ano no coração da região do Bresser. Primeiro, porque cheguei três horas antes do pico da festa, que acontece por volta das sete da noite. Segundo, porque era mais um dia de comemoração no mês da independência da Bolívia, e muitos estavam no Memorial da América Latina.
Entre salões de cabeleleiros, vendedores de produtos típicos e computadores com acesso à Internet, improvisados nos fundos das lojas, os imigrantes tentam manter a memória viva.
Gente como Maria Montano fala pouco. Ela vive há três anos no Brasil, país para o qual mudou devido a falta de emprego e dificuldade de estudar na terra natal. Durante a semana trabalha numa confecção. Aos sábados, vende CDs de música folclórica, cumbia e salsa. O hitmaker, entre os discos de MP3 que organiza sobre uma tábua de madeira é Yuri Ortuño.
A poucos metros dela, Juan Carlos, Juan Carlos (não é erro de digitação, são dois Juan Carlos mesmo) e Jhonny jogam pebolim por R$ 0,15 a ficha. Cada uma dá direito a três bolas. Graças ao baixo custo, as mesas desse tipo de jogo se espalham pelas calçadas.
Resolvo parar em uma casa que vende material para confecção, especialmente linhas, distribuídas em carretéis no formato de cone. Lá, Joana Lopes me recebe. Desconfiada, ela tem mais perguntas a fazer do que eu. Tasco logo uma mentira e digo que a entrevista é parte de um trabalho para a universidade.
“Qual?” – ela pergunta.
Dessa vez sou quase honesto. “Universidade Santo Amaro”, onde um dia estudei.
“Ah, tá” – faz um ar de que não conhece. “Qual curso?”
“Jornalismo” – digo.
“Hummm” – murmura, sem grande simpatia.
Talvez fosse melhor dizer psicologia. Na minha área, especialmente nessa região, vale mais ser um amador do que um profissional em busca de outro furo de reportagem. Nós chegamos, denunciamos, os deixamos sem emprego e ameaçados de morte por colaborarem, involuntariamente, com uma matéria que alguém lerá e esquecerá assim que sair da frente do computador para ir ao banheiro.
Joana para por alguns segundos diante de um cartaz das Agulhas Orange, que ostenta a bandeira brasileira ao fundo. Diz que conheceu o Brasil por meio de estudantes universitários que fazem intercâmbio na Bolivia. Cala-se e, de repente, desaparece no fundo da loja. Reaparece com Luís Vasquez, Presidente da Associação de Moradores Bolivianos da Rua Coimbra (AMRC), com quem começo a conversar.
Tímido, ele sorri de canto de boca e quando tento fazer a primeira pergunta me interrompe e diz.
“Olha, me manda um e-mail que eu te respondo. A maior parte dos jornalistas só associa nossos irmãos à escravidão”, critica. Aceito seu pedido, mas, aos poucos recomeço o papo para quebrar o gelo.
Para ele, mesmo diante do trabalho degradante nas fábricas de roupas, é melhor imigrar do que ficar e enfrentar as desigualdades. A maioria do seu povo sai de zonas rurais como a parte de La Paz que faz divisa com o Peru. O presidente da AMRC me explica que a luta pela concorrência faz com que o valor dos salários diminua cada vez mais na região central de São Paulo. Cerca de somente 3% do valor final do produto chega até o empregado, que recebe por peça. Sem condições de pagar um lugar para morar e diante da necessidade de produzir cada vez mais, muitos vivem onde trabalham. Com o tempo, o salário se torna um prato de comida.
Os coreanos, que substituíram os judeus na região da 25 de março, agora são os chefes. Antes, faziam o que os bolivianos fazem. Num rompante de humor, Vasquez filosofa.
“Talvez um dia nós assumamos o posto dos coreanos e coloquemos os uruguaios no nosso lugar”.
Em alguns minutos recebo uma pequena aula de história. No trecho oriental do país de Luís Vasquez ficam as classes mais ricas e no Vale, de onde saiu o atual presidente, Evo Morales, os mais pobres. Na parte ocidental está a região do Altiplano. Assim como muitas vezes ouvimos por aqui, há uma onda separatista por lá, o desejo de implementar uma “higienização social”.
Migrantes e imigrantes são muito parecidos. No Brasil, basta substituir o Nordeste pelo Vale, o Oriente por São Paulo e o sotaque castelhano por expressões baianas, paraibanas, cearenses. O desejo de juntar dinheiro e voltar para a terra de origem é o mesmo. A ânsia por manter a cultura viva também.
Porém, há uma grande diferença quando se trata da capacidade de indignação.
“Aqui, o ônibus vai de R$ 2 para R$ 2,30 e ninguém faz nada. Na Bolívia, a passagem tem o mesmo preço há 10 anos e qualquer coisa é motivo para mobilização política”, observa.
Aos 21 anos, Cyndi Martinez Hurtado comanda uma das quatro agências que o pai, Hervin Gonzalo Hurtado mantém. A jovem, nascida em Belém do Pará, conta que Hurtado desembarcou por aqui há 33 anos. O avô de Cyndi tinha uma amante brasileira e resolveu raptar o filho e morar aqui. Porém, o romance acabou e o filho foi abandonado, aos sete anos. Hoje, além da loja na Rua Coimbra, a família possui uma unidade na Casa Verde Alta, outra no Pari e mais uma no Bom Retiro. Todos são bairros com um grande número de bolivianos, nacionalidade de todos os funcionários que auxiliam Cyndi, a filha mais velha de uma família de três irmãos. Sem nenhum traço dos ancestrais, a não ser a fluência na língua espanhola, ela oferece por R$ 0,70, o minuto, ligações para qualquer parte da Bolívia. Os clientes compram tíquetes e entram numa cabine transparente equipada com mesa, cadeira e velhos aparelhos telefônicos. Um computador controla o tempo.
Formada em administração, destaca que a discriminação é uma pedra no sapato de alguns povos que chegam ao Brasil, especialmente os sulamericanos.
“As crianças são as que mais sofrem. Como os pais passam a maior parte do tempo nas oficinas de costura, se dedicam pouco aos filhos. Muitos são alvos de brincadeiras cruéis porque freqüentam a escola com roupas rasgadas e sujas. No Orkut, já li pessoas escreverem que somos ‘japonegros’”, diz.
O próximo passo é cursar direito para poder ingressar na Polícia Federal. A idéia é ajudar os imigrantes com a regularização dos documentos, processo que, atualmente, demora até três anos para ser concluído.
Quando nos despedirmos, ela ainda me ensina um pouco sobre meu país.
“Você sabia que a Praia de Copacabana tem esse nome graças à Nossa Senhora de Copacabana, uma santa boliviana?”, pergunta. Eu não sabia.
Antes de entrar num dos restaurantes que vendem Chincarron de Chancho (receita que leva carne de porco), por R$ 10, tentei entrevistar um cabeleleiro, mas todos os salões estavam lotados. Perguntei a um dos funcionários se o dono poderia me atender e ele respondeu, “não, está peruqueando”.
No final da rua, Fernando Coronado entrega panfletos diante da Peluqueria Los Andes. Há cinco anos no Brasil, conta que é casado com uma conterrânea e tem dois filhos brasileiros. No lugar que ajuda a divulgar, mais de 80% da clientela possui as mesmas raízes de Coronado.
Um amplificador conectado ao computador aumenta o alcance da rádio Chacaitaya, que o rapaz sintoniza via internet. Talvez ele não saiba, mas o que faz explica o termo globalização muito melhor do que qualquer especialista dos cadernos de economia dos grandes jornais da cidade.
domingo, 5 de agosto de 2007
Orações e ações
Luiz Carvalho
Durante alguns minutos, parei na altura do número 900 da Rua Dr. Almeida de Lima, na Mooca, para observar uma fronteira imaginária que dividia diferentes desejos e pesadelos. Na calçada do lado ímpar, nos bares próximos à Universidade Anhembi-Morumbi, adolescentes com os nomes dos cursos pintados na testa lembravam que as aulas recomeçaram. Na calçada do lado par, uma fila de adultos suados, principalmente idosos, lembrava que em minutos o Restaurante Bom Prato abriria as portas para quem quisesse comer em troca de R$ 1 ou 25 latinhas.
O programa do governo estadual que funciona num espaço cedido pelo complexo chamado Arsenal Esperança é apenas parte dos serviços da instituição. Por trás do imenso muro bege e dos portões pretos de ferro existem dormitórios, biblioteca, circo, lavanderia, escritórios, uma pequena igreja, um cheep dog chamado Tobi, salas de aula, além do belíssimo jardim e da fonte junto a duas paredes nas quais alguém pintou: “a bondade desarma”.
Lorenzo Nacheli e eu nos sentamos num banco de madeira, sob o sol da manhã. Vice-coordenador da unidade brasileira, ele conta
que tudo começou com um senhor chamado Ernesto Olivero, fundador do Servizio Missionário
Giovani (Semig) ou Serviço Missionário de Jovens, no ano de 1964, em Turim, na Itália.
O nome, Arsenal da Paz, foi inspirado na sede da entidade, uma fábrica abandonada que um dia serviu para produzir armas utilizadas por soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial.
A barba cumprida envelhece o homem de 35 anos com quem converso. Apesar de viver há oito no país, o sotaque deixa claro que ele não é brasileiro. Os acolhidos se transformam em “acoidos” e o ‘r’, de rua, perde a força. Os chinelos com meias e o agasalho de moletom passam a impressão de pouca preocupação com a imagem, nenhuma vaidade. A resposta vem da sua opção. Trata-se de um consagrado leigo, fatia do Semig que não se casa e decide doar a vida à caridade. “Na Itália e nos EUA, muita gente vive na rua por opção, para fugir da sociedade. No Brasil, a maior parte é obrigada a viver essa opção por problemas com drogas, álcool, abuso sexual e falta de emprego”, acredita.
Lorenzo faz questão de frisar que a filosofia do espaço é adotar princípio diferente de um albergue, onde a ajuda se restringe a cama e comida. “Nosso trabalho é acolher pessoas, estruturá-las e depois ajudá-las a encontrar um caminho. Formamos um berço bonito, mas que leva os homens a desejarem sair daqui”, diz. Segundo ele, após passarem por uma triagem, os candidatos à acolhida recebem uma espécie de roteiro de reinserção. Um grupo de assistentes sociais trata do acompanhamento dessas pessoas nas áreas de educação, saúde e documentação.
Ele diferencia os acolhidos em dois grupos: moradores de rua e moradores em situação de rua. “Qual é a diferença?”“No primeiro grupo estão pessoas que já não se enquadram mais em regras, horários e por isso não querem viver em um lugar como o nosso. No segundo, estão aqueles para quem as calçadas são um lar provisório”.
Para Marcos Silva, 43, o problema não é a dificuldade em seguir normas. Ele deixou a instituição após três anos de convivência, um curso de cabeleleiro e um de escultura pela Anhembi-Morumbi. Em 2004, quando saiu, alugou um quarto com um amigo. Mas, a falta de grana o obrigou a viver nos espaços por onde nossos passos apertados passam. “Já na época em que vivia aqui, trabalhava com reciclagem, catando papelão e garrafas pet. Após um tempo, essa se tornou minha única forma de sobrevivência e como não podemos deixar nossos carrinhos na Arsenal, precisei fazer uma opção”. Por volta das três da tarde ele é um dos últimos na fila para o almoço. Com cortes de cabelos particulares fatura até R$ 40 por mês e consegue dinheiro para comer. Seu sonho é montar uma ONG que produza conhecimento para lutar contra a poluição dos mares.De fala fácil, conta que a mãe, alcoólatra, não deixou o pai registrar nenhum dos filhos porque dizia que ele poderia lhe tirar as crianças. Aos 14 anos, após ser mandado embora inúmeras vezes, Marcos deixou a casa onde vivia com mais seis irmãos para ficar sob proteção de um padre, que o acompanhou até completar 18 anos. Aquele cara magro, baixo, de cabelos raspados, afirma ter enterrado 25 fetos no quintal de casa, fruto de abortos maternos.
Pausa na entrevista. Uma lágrima escorre no rosto do homem com quem encerro o papo e de quem ouço um “boa sorte.”
A instituição chegou ao Brasil pelas mãos do governo Mário Covas (1995-2001), em 1996 e passou a ocupar um espaço que funcionava como casa de acolhida, abrigo para menores do SOS Criança e para mulheres com deficiências mentais. Por meio de Dom Paulo de Evaristo Arns, Covas procurou a Semig, que resolveu enviar três missionários para iniciarem o trabalho em terras brasileiras. Porém, o início da história do local remete ao final do século 19, quando o Visconde de Parnaíba construiu a Hospedaria dos Imigrantes para abrigar povos que chegavam ao país. Até 1950, mais de seis milhões de estrangeiros passaram pelo lugar onde o grupo italiano atua hoje.
A convite de Lorenzo, Antônio Paladino, presidente da Arsenal, se junta a nós. Alto, cabelos grisalhos, óculos grandes, se move de forma ágil, apesar de mancar da perna esquerda. Enquanto caminhamos, ele conta como chegou até ali. “Me converti à proposta porque achava que fazia muito pouco como cristão, além de rezar. Nenhuma oração é completa se não for precedida de uma ação”, acredita o pai de três filhos e avô de quatro netos.
No imenso refeitório, uma grande quantidade de velhos come ao lado de uma legião de motoboys da região e jovens que deixam ao lado do prato sacos de balsa para venderem nos semáforos. Juan, nove anos, segundo filho de uma família de sete irmãos, almoça ao lado de Anderson, amigo de 14 anos. Ambos moram na Mooca e, desconfiados, não querem papo, nem mesmo quando tento puxar assunto sobre futebol. Nenhum adulto os acompanha.
Quando Paladino, Lorenzo e eu cruzamos a quadra para ir à lavanderia, um acolhido questiona o presidente sobre um torneio de xadrez que acontecerá em breve.“Dizem que xadrez é bom para formar estrategistas”, comento.“Isso eles já são. Precisam ser para descobrir onde comer, para onde ir”, responde o senhor.
Na lavanderia, Flávio dos Santos é um dos 80 funcionários da casa. Faz parte de um grupo de pessoas que se renova mensalmente. São internos que recebem salário para auxiliar na manutenção, lavagem de roupa, limpeza de banheiros. Como mais da metade dos companheiros da casa, ele saiu de um outro estado – Paraná – para tentar a sorte em São Paulo. Trabalhou na construção civil, rodou o interior, veio para a capital paulista e há um mês vive na instituição, após perder o emprego. Caminha com uma identificação no peito que mostra o número do beliche.
Nossa última parada é uma pequena capela, no fundo do terreno. Paladino se ajoelha e faz o sinal da cruz. Por respeito, abaixo levemente o tronco e cruzo a mão direita no peito, conforme me ensinaram no catecismo.“Está vendo a porta do sacrário?”, pergunta. “Antes era utilizada num forno em que forjavam armas e agora guarda o corpo de Cristo”. Como a Igreja Católica, a entidade que preside é uma sacola de metáforas.
São quatro e meia e eu me preparo para deixar o lugar. Diante do Arsenal, uma nova fila se forma, agora, com pessoas que chegaram para passar a noite.
Expedito Santos tem 45 anos e é o primeiro. Carrega um sorriso no rosto e uma sacola de plástico com objetos pessoais na mão direita. Sua história é como a de muitos outros. Deixou Piauí, o estado natal, para arrumar trabalho e foi parar na cidade paulista de Embu das Artes, onde trabalhou como carregador. Foi ainda estivador no Porto de Santos, antes de chegar à cidade de São Paulo. Mais um desempregado, mais um a morar na rua. No dia 3 de setembro completou quatro meses de instituição. Os sonhos do homem divorciado que deixou uma filha no norte são arrumar um trabalho fixo, ao invés dos bicos de carga e descarga, e alugar um quartinho.
“O problema, sabe, é a idade e a falta da escola”, aponta o piauiense. Quais serão os sonhos dos estudantes do bar em frente
Luiz Carvalho
Durante alguns minutos, parei na altura do número 900 da Rua Dr. Almeida de Lima, na Mooca, para observar uma fronteira imaginária que dividia diferentes desejos e pesadelos. Na calçada do lado ímpar, nos bares próximos à Universidade Anhembi-Morumbi, adolescentes com os nomes dos cursos pintados na testa lembravam que as aulas recomeçaram. Na calçada do lado par, uma fila de adultos suados, principalmente idosos, lembrava que em minutos o Restaurante Bom Prato abriria as portas para quem quisesse comer em troca de R$ 1 ou 25 latinhas.
O programa do governo estadual que funciona num espaço cedido pelo complexo chamado Arsenal Esperança é apenas parte dos serviços da instituição. Por trás do imenso muro bege e dos portões pretos de ferro existem dormitórios, biblioteca, circo, lavanderia, escritórios, uma pequena igreja, um cheep dog chamado Tobi, salas de aula, além do belíssimo jardim e da fonte junto a duas paredes nas quais alguém pintou: “a bondade desarma”.
Lorenzo Nacheli e eu nos sentamos num banco de madeira, sob o sol da manhã. Vice-coordenador da unidade brasileira, ele conta
que tudo começou com um senhor chamado Ernesto Olivero, fundador do Servizio Missionário
Giovani (Semig) ou Serviço Missionário de Jovens, no ano de 1964, em Turim, na Itália.
O nome, Arsenal da Paz, foi inspirado na sede da entidade, uma fábrica abandonada que um dia serviu para produzir armas utilizadas por soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial.
A barba cumprida envelhece o homem de 35 anos com quem converso. Apesar de viver há oito no país, o sotaque deixa claro que ele não é brasileiro. Os acolhidos se transformam em “acoidos” e o ‘r’, de rua, perde a força. Os chinelos com meias e o agasalho de moletom passam a impressão de pouca preocupação com a imagem, nenhuma vaidade. A resposta vem da sua opção. Trata-se de um consagrado leigo, fatia do Semig que não se casa e decide doar a vida à caridade. “Na Itália e nos EUA, muita gente vive na rua por opção, para fugir da sociedade. No Brasil, a maior parte é obrigada a viver essa opção por problemas com drogas, álcool, abuso sexual e falta de emprego”, acredita.
Lorenzo faz questão de frisar que a filosofia do espaço é adotar princípio diferente de um albergue, onde a ajuda se restringe a cama e comida. “Nosso trabalho é acolher pessoas, estruturá-las e depois ajudá-las a encontrar um caminho. Formamos um berço bonito, mas que leva os homens a desejarem sair daqui”, diz. Segundo ele, após passarem por uma triagem, os candidatos à acolhida recebem uma espécie de roteiro de reinserção. Um grupo de assistentes sociais trata do acompanhamento dessas pessoas nas áreas de educação, saúde e documentação.
Ele diferencia os acolhidos em dois grupos: moradores de rua e moradores em situação de rua. “Qual é a diferença?”“No primeiro grupo estão pessoas que já não se enquadram mais em regras, horários e por isso não querem viver em um lugar como o nosso. No segundo, estão aqueles para quem as calçadas são um lar provisório”.
Para Marcos Silva, 43, o problema não é a dificuldade em seguir normas. Ele deixou a instituição após três anos de convivência, um curso de cabeleleiro e um de escultura pela Anhembi-Morumbi. Em 2004, quando saiu, alugou um quarto com um amigo. Mas, a falta de grana o obrigou a viver nos espaços por onde nossos passos apertados passam. “Já na época em que vivia aqui, trabalhava com reciclagem, catando papelão e garrafas pet. Após um tempo, essa se tornou minha única forma de sobrevivência e como não podemos deixar nossos carrinhos na Arsenal, precisei fazer uma opção”. Por volta das três da tarde ele é um dos últimos na fila para o almoço. Com cortes de cabelos particulares fatura até R$ 40 por mês e consegue dinheiro para comer. Seu sonho é montar uma ONG que produza conhecimento para lutar contra a poluição dos mares.De fala fácil, conta que a mãe, alcoólatra, não deixou o pai registrar nenhum dos filhos porque dizia que ele poderia lhe tirar as crianças. Aos 14 anos, após ser mandado embora inúmeras vezes, Marcos deixou a casa onde vivia com mais seis irmãos para ficar sob proteção de um padre, que o acompanhou até completar 18 anos. Aquele cara magro, baixo, de cabelos raspados, afirma ter enterrado 25 fetos no quintal de casa, fruto de abortos maternos.
Pausa na entrevista. Uma lágrima escorre no rosto do homem com quem encerro o papo e de quem ouço um “boa sorte.”
A instituição chegou ao Brasil pelas mãos do governo Mário Covas (1995-2001), em 1996 e passou a ocupar um espaço que funcionava como casa de acolhida, abrigo para menores do SOS Criança e para mulheres com deficiências mentais. Por meio de Dom Paulo de Evaristo Arns, Covas procurou a Semig, que resolveu enviar três missionários para iniciarem o trabalho em terras brasileiras. Porém, o início da história do local remete ao final do século 19, quando o Visconde de Parnaíba construiu a Hospedaria dos Imigrantes para abrigar povos que chegavam ao país. Até 1950, mais de seis milhões de estrangeiros passaram pelo lugar onde o grupo italiano atua hoje.
A convite de Lorenzo, Antônio Paladino, presidente da Arsenal, se junta a nós. Alto, cabelos grisalhos, óculos grandes, se move de forma ágil, apesar de mancar da perna esquerda. Enquanto caminhamos, ele conta como chegou até ali. “Me converti à proposta porque achava que fazia muito pouco como cristão, além de rezar. Nenhuma oração é completa se não for precedida de uma ação”, acredita o pai de três filhos e avô de quatro netos.
No imenso refeitório, uma grande quantidade de velhos come ao lado de uma legião de motoboys da região e jovens que deixam ao lado do prato sacos de balsa para venderem nos semáforos. Juan, nove anos, segundo filho de uma família de sete irmãos, almoça ao lado de Anderson, amigo de 14 anos. Ambos moram na Mooca e, desconfiados, não querem papo, nem mesmo quando tento puxar assunto sobre futebol. Nenhum adulto os acompanha.
Quando Paladino, Lorenzo e eu cruzamos a quadra para ir à lavanderia, um acolhido questiona o presidente sobre um torneio de xadrez que acontecerá em breve.“Dizem que xadrez é bom para formar estrategistas”, comento.“Isso eles já são. Precisam ser para descobrir onde comer, para onde ir”, responde o senhor.
Na lavanderia, Flávio dos Santos é um dos 80 funcionários da casa. Faz parte de um grupo de pessoas que se renova mensalmente. São internos que recebem salário para auxiliar na manutenção, lavagem de roupa, limpeza de banheiros. Como mais da metade dos companheiros da casa, ele saiu de um outro estado – Paraná – para tentar a sorte em São Paulo. Trabalhou na construção civil, rodou o interior, veio para a capital paulista e há um mês vive na instituição, após perder o emprego. Caminha com uma identificação no peito que mostra o número do beliche.
Nossa última parada é uma pequena capela, no fundo do terreno. Paladino se ajoelha e faz o sinal da cruz. Por respeito, abaixo levemente o tronco e cruzo a mão direita no peito, conforme me ensinaram no catecismo.“Está vendo a porta do sacrário?”, pergunta. “Antes era utilizada num forno em que forjavam armas e agora guarda o corpo de Cristo”. Como a Igreja Católica, a entidade que preside é uma sacola de metáforas.
São quatro e meia e eu me preparo para deixar o lugar. Diante do Arsenal, uma nova fila se forma, agora, com pessoas que chegaram para passar a noite.
Expedito Santos tem 45 anos e é o primeiro. Carrega um sorriso no rosto e uma sacola de plástico com objetos pessoais na mão direita. Sua história é como a de muitos outros. Deixou Piauí, o estado natal, para arrumar trabalho e foi parar na cidade paulista de Embu das Artes, onde trabalhou como carregador. Foi ainda estivador no Porto de Santos, antes de chegar à cidade de São Paulo. Mais um desempregado, mais um a morar na rua. No dia 3 de setembro completou quatro meses de instituição. Os sonhos do homem divorciado que deixou uma filha no norte são arrumar um trabalho fixo, ao invés dos bicos de carga e descarga, e alugar um quartinho.
“O problema, sabe, é a idade e a falta da escola”, aponta o piauiense. Quais serão os sonhos dos estudantes do bar em frente
sexta-feira, 27 de julho de 2007
Quinta trans no coração da Cidade
Luiz Carvalho
Faz frio. Muito frio. Quase neva na Boca do Lixo, onde São Paulo abriga parcela do público que não tolera: mendigos, prostitutas, homossexuais, travestis. Não sei o que veio primeiro, se o pseudônimo do centro velho da cidade ou os moradores, mas o hilário é observar que o gueto, conforme definiu uma travesti chamada Renata –que reencontrei nessa quinta– personifica o termo liberdade de expressão. O que é afronta? Um casal de mulheres com o rosto colado, mãos unidas, a observar o cardápio do bar Arco-Íris? Dois rapazes se beijando, encostados na porta de ferro de uma loja fechada? Nós não estamos preparados para a verdade.
Felizmente, seis e quarenta e cinco não são seis e quarenta e cinco para os paulistanos. Chego pontualmente vinte minutos atrasado no Tele-Pizza
Esfiharia, lanchonete de nome tão abrangente quanto o público que atende. Na primeira vez que estive alí para conhecer o Quintas-Trans, encontro quinzenal de transexuais, fiquei impressionado com a naturalidade que nos atenderam. Naquela ocasião, o tema era inclusão social e os participantes não tentavam disfarçar a identidade. Muito pelo contrário, pareciam se orgulhar do caminho que trilharam para chegar até aquela mesa.
Hoje, eu percebi o motivo do bom atendimento, ao observar, por meio de um espelho no outro lado do salão, um relógio pendurado na parede com as cores do arco-íris. Uma bandeirinha colorida sobre o computador no qual Cristina, uma das donas do lugar registra os pedidos serve para não deixar dúvidas de onde estamos. A outra proprietária é Patrícia, responsável por fazer o papel de garçonete. Elas compraram o ponto há três anos porque queriam uma casa para atender gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Conseguiram atingir o objetivo: o lugar é homogêneo e atrai desde professores filiados ao sindicato, que fica próximo, na Praça da República, até membros de Igrejas GLBTT da redondeza, além de famílias como a sua e a minha, com crianças e vovós. Cristina e Patrícia completam 12 anos juntas em outubro.
Somos em cinco nessa noite e Alessandra Saraiva, transexual feminina em transição e uma das coordenadoras da Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, conduz o debate. Cabelos negros e longos, há 20 dias ela fez lipoescultura para tornear os quadris e implantou duas próteses de silicone, num total de 450 ml. Esse tempo é foda."Ela é colocada embaixo do músculo e como no frio os nervos se contraem involuntariamente, eu sinto um pouco de dor".
Casada, pós-graduada em Design, Marketing e Propaganda, foi a protagonista da minha Tese de Conclusão de Curso (TCC). Em nossos raros encontros, nunca comentei sobre o resultado final da entrevista que fiz há um ano. Ficaria difícil explicar como é possível apresentar um livro-reportagem com apenas duas personagens (a outra foi Paulo Mariante, do Identidade, grupo GLBTT de Campinas). Felizmente, a boa reputação de quatro anos na Universidade Santo Amaro serviram para amenizar as críticas dos jurados da banca.
Com ar professoral, Alessandra contém a ansiedade de Gil, no documento, Givanilde, transexual masculino e militante do movimento de moradia. Ele tenta aguardar sua vez para falar entre um cigarro e um gole de cerveja. Trata com carinho Cinthia, no RG, Edílson, transexual feminina com estilo de estudante esforçada e apaixonada por informática.
Ao meu lado, Renata, aquela travesti franzina e articulada sobre quem já comentei no primeiro parágrafo, não lembra nem um pouco os estereótipos dos programas de risadas gravadas. Na outra ponta da mesa, David, um cara que trabalha na parte administrativa da Associação.
No exato momento em que Barry White aparece na tela da TV da lanchonete a dinâmica começa. O tema de hoje é auto-estima. Primeiro, Alessandra pede para nos apresentarmos, dizermos como chegamos ao Quintas-Trans e o que nos faz feliz. Renata começa com o pé-direito: diz que soube dos encontros através do site e se sente bem quando fuma um baseado e faz palavras cruzadas. Já Gil, conheceu a APOGLBT quando caminhava no centro com uma amiga casada com um bombeiro e foi abordada por militantes. Começou a freqüentar, estreitar laços, se tornou parte do Fórum Municipal de Travestis, Transexuais e Transgêneros e com o tempo soube das reuniões. É feliz quando está com pessoas bacanas, como nós. Não me lembro como Cinthia chegou até ali, mas sei que ela curte compartilhar lembranças e andar de ônibus. David tem uma história parecida com a de Gil. Também encontrou um ex-presidente da entidade, quando este fazia panfletagem na Rua Vieira de Carvalho (um dos principais redutos GLBTT em São Paulo). Como fazê-lo feliz? Não sei se entendi errado, mas fiquei com vergonha de perguntar. Eu ouvi ele dizer que basta um fist fucking, mas não tenho certeza. Antes que você vá procurar no Google, essa é uma prática em que um dos parceiros enfia mão e punho no ânus do outro. Aguarde errata.
Gil comenta alguma coisa e eu perco a parte em que Alessandra explica como chegou à Associação, mas ela diz que se sente feliz ao lado do marido e quando sair dali ficará com ele. Só para você saber, eu disse que descobri a reunião quando pesquisava para o meu TCC e o sorriso da minha filha de um ano e três meses é o que me deixa mais feliz.
Vendedores de flores e de amendoins vão e vem, enquanto surgem discussões sobre a luta para alterar o nome nos documentos. Renata acredita que a construção da auto-estima é mais difícil para pessoas que sofrem com o julgamento negativo a maior parte do tempo."No meu caso foi um processo solitário até encontrar outras como eu. Muitas vezes a baixa auto-estima está relacionada com falta de informação".
"Estamos sempre vulneráveis e durante meses eu acordava com espasmos porque tinha medo de sair de casa. Tinha pavor de dormir porque ia acordar mal. Isso só mudou quando passei a dizer para mim mesma, ao acordar, que não iria ser agredida", comenta Alessandra Saraiva.
Na última parte da dinâmica, ela distribui um teste de auto-avaliação. São três folhas azuis com perguntas como “eu me sinto bem com as expressões do meu rosto, com meus modos, maneira de falar e de me mover?”. Devo assinalar de zero a quatro. O zero equivale a “nem um pouco” e o quatro a “totalmente”. Nessa eu coloquei um, que corresponde a “um pouco”. No final atingi 35 pontos. Estou no nível, “beleza, não chega a ser uma bosta, mas precisa melhorar isso aí”.
Por volta das dez da noite, minhas pernas estão quase congeladas e eu mal consigo evitar tremer. O encontro está para acabar, mas ainda dá tempo de uma observação. "Antes de sermos militantes, somos pessoas sujeitas a preconceitos que carregamos desde a infância. O fato de estarmos no movimento não significa que somos resolvidas. Todo mundo é maluco, não dá para confiar 100% nas pessoas e aguardar a aprovação dos outros." Assim falou Renata.
Foi uma noite muito agradável e talvez não tenha competência para lhe fazer acreditar que Cinthia, Gil, Renata, David e Alessandra são pessoas que passariam impunes na multidão, sem chamar atenção da cidade de prédios com vista para outros prédios cinza. Ao menos até mostrarem o que pensam e em que acreditam.
Links:
Quintas Trans: www.quintastrans.blogspot.com
Telepizza-Esfiharia: http://www.telepizzalaranjao.com.br/
Luiz Carvalho
Faz frio. Muito frio. Quase neva na Boca do Lixo, onde São Paulo abriga parcela do público que não tolera: mendigos, prostitutas, homossexuais, travestis. Não sei o que veio primeiro, se o pseudônimo do centro velho da cidade ou os moradores, mas o hilário é observar que o gueto, conforme definiu uma travesti chamada Renata –que reencontrei nessa quinta– personifica o termo liberdade de expressão. O que é afronta? Um casal de mulheres com o rosto colado, mãos unidas, a observar o cardápio do bar Arco-Íris? Dois rapazes se beijando, encostados na porta de ferro de uma loja fechada? Nós não estamos preparados para a verdade.
Felizmente, seis e quarenta e cinco não são seis e quarenta e cinco para os paulistanos. Chego pontualmente vinte minutos atrasado no Tele-Pizza
Esfiharia, lanchonete de nome tão abrangente quanto o público que atende. Na primeira vez que estive alí para conhecer o Quintas-Trans, encontro quinzenal de transexuais, fiquei impressionado com a naturalidade que nos atenderam. Naquela ocasião, o tema era inclusão social e os participantes não tentavam disfarçar a identidade. Muito pelo contrário, pareciam se orgulhar do caminho que trilharam para chegar até aquela mesa.
Hoje, eu percebi o motivo do bom atendimento, ao observar, por meio de um espelho no outro lado do salão, um relógio pendurado na parede com as cores do arco-íris. Uma bandeirinha colorida sobre o computador no qual Cristina, uma das donas do lugar registra os pedidos serve para não deixar dúvidas de onde estamos. A outra proprietária é Patrícia, responsável por fazer o papel de garçonete. Elas compraram o ponto há três anos porque queriam uma casa para atender gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Conseguiram atingir o objetivo: o lugar é homogêneo e atrai desde professores filiados ao sindicato, que fica próximo, na Praça da República, até membros de Igrejas GLBTT da redondeza, além de famílias como a sua e a minha, com crianças e vovós. Cristina e Patrícia completam 12 anos juntas em outubro.
Somos em cinco nessa noite e Alessandra Saraiva, transexual feminina em transição e uma das coordenadoras da Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, conduz o debate. Cabelos negros e longos, há 20 dias ela fez lipoescultura para tornear os quadris e implantou duas próteses de silicone, num total de 450 ml. Esse tempo é foda."Ela é colocada embaixo do músculo e como no frio os nervos se contraem involuntariamente, eu sinto um pouco de dor".
Casada, pós-graduada em Design, Marketing e Propaganda, foi a protagonista da minha Tese de Conclusão de Curso (TCC). Em nossos raros encontros, nunca comentei sobre o resultado final da entrevista que fiz há um ano. Ficaria difícil explicar como é possível apresentar um livro-reportagem com apenas duas personagens (a outra foi Paulo Mariante, do Identidade, grupo GLBTT de Campinas). Felizmente, a boa reputação de quatro anos na Universidade Santo Amaro serviram para amenizar as críticas dos jurados da banca.
Com ar professoral, Alessandra contém a ansiedade de Gil, no documento, Givanilde, transexual masculino e militante do movimento de moradia. Ele tenta aguardar sua vez para falar entre um cigarro e um gole de cerveja. Trata com carinho Cinthia, no RG, Edílson, transexual feminina com estilo de estudante esforçada e apaixonada por informática.
Ao meu lado, Renata, aquela travesti franzina e articulada sobre quem já comentei no primeiro parágrafo, não lembra nem um pouco os estereótipos dos programas de risadas gravadas. Na outra ponta da mesa, David, um cara que trabalha na parte administrativa da Associação.
No exato momento em que Barry White aparece na tela da TV da lanchonete a dinâmica começa. O tema de hoje é auto-estima. Primeiro, Alessandra pede para nos apresentarmos, dizermos como chegamos ao Quintas-Trans e o que nos faz feliz. Renata começa com o pé-direito: diz que soube dos encontros através do site e se sente bem quando fuma um baseado e faz palavras cruzadas. Já Gil, conheceu a APOGLBT quando caminhava no centro com uma amiga casada com um bombeiro e foi abordada por militantes. Começou a freqüentar, estreitar laços, se tornou parte do Fórum Municipal de Travestis, Transexuais e Transgêneros e com o tempo soube das reuniões. É feliz quando está com pessoas bacanas, como nós. Não me lembro como Cinthia chegou até ali, mas sei que ela curte compartilhar lembranças e andar de ônibus. David tem uma história parecida com a de Gil. Também encontrou um ex-presidente da entidade, quando este fazia panfletagem na Rua Vieira de Carvalho (um dos principais redutos GLBTT em São Paulo). Como fazê-lo feliz? Não sei se entendi errado, mas fiquei com vergonha de perguntar. Eu ouvi ele dizer que basta um fist fucking, mas não tenho certeza. Antes que você vá procurar no Google, essa é uma prática em que um dos parceiros enfia mão e punho no ânus do outro. Aguarde errata.
Gil comenta alguma coisa e eu perco a parte em que Alessandra explica como chegou à Associação, mas ela diz que se sente feliz ao lado do marido e quando sair dali ficará com ele. Só para você saber, eu disse que descobri a reunião quando pesquisava para o meu TCC e o sorriso da minha filha de um ano e três meses é o que me deixa mais feliz.
Vendedores de flores e de amendoins vão e vem, enquanto surgem discussões sobre a luta para alterar o nome nos documentos. Renata acredita que a construção da auto-estima é mais difícil para pessoas que sofrem com o julgamento negativo a maior parte do tempo."No meu caso foi um processo solitário até encontrar outras como eu. Muitas vezes a baixa auto-estima está relacionada com falta de informação".
"Estamos sempre vulneráveis e durante meses eu acordava com espasmos porque tinha medo de sair de casa. Tinha pavor de dormir porque ia acordar mal. Isso só mudou quando passei a dizer para mim mesma, ao acordar, que não iria ser agredida", comenta Alessandra Saraiva.
Na última parte da dinâmica, ela distribui um teste de auto-avaliação. São três folhas azuis com perguntas como “eu me sinto bem com as expressões do meu rosto, com meus modos, maneira de falar e de me mover?”. Devo assinalar de zero a quatro. O zero equivale a “nem um pouco” e o quatro a “totalmente”. Nessa eu coloquei um, que corresponde a “um pouco”. No final atingi 35 pontos. Estou no nível, “beleza, não chega a ser uma bosta, mas precisa melhorar isso aí”.
Por volta das dez da noite, minhas pernas estão quase congeladas e eu mal consigo evitar tremer. O encontro está para acabar, mas ainda dá tempo de uma observação. "Antes de sermos militantes, somos pessoas sujeitas a preconceitos que carregamos desde a infância. O fato de estarmos no movimento não significa que somos resolvidas. Todo mundo é maluco, não dá para confiar 100% nas pessoas e aguardar a aprovação dos outros." Assim falou Renata.
Foi uma noite muito agradável e talvez não tenha competência para lhe fazer acreditar que Cinthia, Gil, Renata, David e Alessandra são pessoas que passariam impunes na multidão, sem chamar atenção da cidade de prédios com vista para outros prédios cinza. Ao menos até mostrarem o que pensam e em que acreditam.
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Telepizza-Esfiharia: http://www.telepizzalaranjao.com.br/
sexta-feira, 20 de julho de 2007
Uma tonelada e meia
Luiz Carvalho
Alexsander Whitaker Santos é atleta profissional, tem 37 anos e integra uma delegação de halterofilistas que estará nos jogos do Rio de Janeiro. Porém, ele entra em cena somente a partir do início do mês que vem.
Tarde de sábado, ele bate papo, ao lado do instrutor, Antônio Augusto Ferreira Júnior, com um aluno da academia Projeto A4, na zona norte de São Paulo, onde treina diariamente. Em fase final de preparação, durante três dias Alex faz exercícios específicos de levantamento de peso e nos demais, condicionamento físico para disputar o Parapanamericanos, que começa no dia 12 de agosto e termina no dia 19.
Vestido com uma camiseta branca onde se lê, “limite é um lugar que não existe”, bermuda bege, um par de tênis azul e uma cadeira de rodas, o bi campeão mundial, hepta campeão brasileiro entre atletas com deficiência, bi brasileiro em disputa que inclui não deficientes e recordista sul americano também entre não deficientes, começa a contar sua história. No espaço de 2 mil metros quadrados ele lembra do dia 29 de junho de 1993, quando ao estacionar o carro diante da Columbia, boate paulistana que não existe mais, foi vítima de um assalto. Durante a confusão, foi alvejado por dois tiros, que se alojaram na espinha e lhe tiraram os movimentos dos membros inferiores.
Alex ficou internado durante três meses e após esse período começou a fazer reabilitação na universidade onde cursava o terceiro ano de nutrição. Passou a viver uma situação irônica: por um lado servia de modelo para os alunos de fisioterapia e neurologia, mas por outro enfrentava as dificuldades de um ambiente inadequado para sua condição. “Apesar de existir uma clínica e médicos disponíveis, os pacientes não conseguiam entrar sem ajuda e muito menos utilizar o ambiente da escola, que não possuía rampas de acesso e banheiros adaptados.”
A musculação surgiu como complemento da natação, parte da fisioterapia que os doutores lhe recomendaram. “Soube, por meio de amigos, que existiam competições para pessoas com deficiências físicas. Como não nadava tão bem, resolvi participar de um campeonato que também tinha halterofilismo e peguei o segundo lugar. Achei que o esporte poderia ser uma forma de competir também com pessoas que não tinham deficiência física e voltar à vida como era antes.”
O atleta fala sobre o acidente e a recuperação sem qualquer traço de rancor. Não há nenhum sinal de angústia em suas palavras. Entre outros fatores, talvez, porque se trata de uma exceção, algo que ele mesmo reconhece. Com a ajuda dos pais conseguiu comprar um veículo adaptado para fugir do constrangimento de aguardar táxis que nunca paravam. “Os motoristas me evitavam porque tinham medo da cadeira rasgar o estofamento”. Também com ajuda da família conseguiu concluir a pós-graduação em nutrição esportiva, que lhe permite prestar consultoria para três academias no período da tarde, após os treinamentos.
A amizade com Júnior começou em 1987. O apoio do treinador desde os primeiros passos foi fundamental para a profissionalização. Coordenador da equipe Panamericana nacional de levantamento de peso, Antônio Júnior prepara outros dois halterofilistas que disputarão o Parapan e um grupo de cegos que participará do mundial desse tipo de deficiência, no Brasil, neste ano. Na academia que comprou há 10 anos, nenhum deles paga pela estrutura ou pelo trabalho do técnico.
Para a modalidade que Alexsander Santos escolheu disputar, as pernas são um empecilho. “No paradesporto, as categorias do halterofilismo só se distinguem por peso. O atleta paraplégico disputa com outros que tem os membros inferiores amputados ou seqüela de poliomielite. Na hora da pesagem, como tenho uma deficiência adquirida, minhas pernas jogam contra”. Assim, enquanto os outros contam apenas com o peso do tronco e dos braços, Alex carrega uma ‘sobrecarga’ que não utiliza e limita a possibilidade de aumento de massa muscular.
Diante dessa dificuldade, assim como acontece com muitos lutadores de boxe, ele teve que perder mais de 20kg para se enquadrar numa categoria com marcas próximas a seu rendimento. Isso quase lhe causou um problema na Paraolimpíada de Sydney, Austrália, em 2000, a primeira que disputou. A dois meses do inicío da prova, eis que o ísquio, um dos ossos que formam o quadril, perfurou sua pele. Como não tem sensibilidade na região, só percebeu o ferimento quando estava num grau avançado de infecção. Entre a cirurgia que precisou enfrentar e a recuperação, ficou parado por 45 dias e sua marca caiu 70 kg. Mesmo com um mês de treino não foi possível voltar à forma ideal. Ainda assim, levantou 185kg, contra 200 do primeiro colocado, patamar que o brasileiro atingia antes da operação.
Quatorze anos após o assalto, o halterofilista avalia que algumas políticas públicas, como a lei de cotas, que obriga a contratação de trabalhadores com deficiência de acordo com o número de funcionários, representa avanço, mas ainda é superficial. “Não adianta contratar se não houver suporte, porque muitos deficientes não têm qualificação. Boa parte de nós não puderam não puderam se preparar diante de problemas como a dificuldade de locomoção. A visão que as pessoas tem dos deficientes físicos mudou, mas o acesso aos espaços públicos ainda é ruim”.
Consciente sobre o papel social, exige apenas o que lhe é de direito. “Sou cobrado igual a você em todos os aspectos, pago os mesmos impostos. Então porque a dificuldade em entrar num restaurante?”
Há um mês Alex mora sozinho, após ter se separado da mulher com quem viveu durante 12 anos e a quem conheceu após o acidente. Sua rotina começa às 07h30 da manhã e termina por volta das 18h30, horário em que nosso papo termina.
Pergunto ao treinador o que falta aos atletas do Parapanamericano e ele responde, sem titubear: “mídia”. “Como os meios de comunicação no Brasil ignoram as Paraolimpíadas não existem patrocinadores. Apenas as Loterias da Caixa bancam todo o evento e assim funciona com todas as categorias. Em 2006, foram R$ 3 milhões para repartir entre todos os competidores nacionais do setor.” Lembre-se disso quando assistir uma propaganda sobre responsabilidade social do banco onde tem conta, nobre leitor.
Por meio do programa Bolsa Atleta, Alex recebe R$ 2.500 mensais, num contrato que vai até a Olimpíada de Pequim e exige exclusividade com o governo federal. Porém, isso só foi possível graças ao 4.º lugar em Sydney. Segundo Antônio Júnior, o valor é razoável para disputar o circuito nacional, mas insuficiente para disputar campeonatos internacionais.
Antes de ir embora, observo o processo que Alexsander Santos repete todos os dias. O técnico conduz a cadeira de rodas até a beira de um colchonete azul sobre uma plataforma. O atleta, sem ajuda do amigo, apóia as mãos espalmadas no encosto da cadeira e se move para o colchonete. Lá, ele fica estirado e começa a aquecer os braços, antes de iniciar uma das 15 séries de levantamento de peso. No final das sessões, ele ergue o equivalente a uma tonelada e meia.
Em 23 dias ele repetirá estes movimentos, porém, só terá três chances, em dois minutos para mostrar o resultado de mais de uma década de luta. Certamente, você não verá isso na Globo.
Luiz Carvalho
Alexsander Whitaker Santos é atleta profissional, tem 37 anos e integra uma delegação de halterofilistas que estará nos jogos do Rio de Janeiro. Porém, ele entra em cena somente a partir do início do mês que vem.
Tarde de sábado, ele bate papo, ao lado do instrutor, Antônio Augusto Ferreira Júnior, com um aluno da academia Projeto A4, na zona norte de São Paulo, onde treina diariamente. Em fase final de preparação, durante três dias Alex faz exercícios específicos de levantamento de peso e nos demais, condicionamento físico para disputar o Parapanamericanos, que começa no dia 12 de agosto e termina no dia 19.
Vestido com uma camiseta branca onde se lê, “limite é um lugar que não existe”, bermuda bege, um par de tênis azul e uma cadeira de rodas, o bi campeão mundial, hepta campeão brasileiro entre atletas com deficiência, bi brasileiro em disputa que inclui não deficientes e recordista sul americano também entre não deficientes, começa a contar sua história. No espaço de 2 mil metros quadrados ele lembra do dia 29 de junho de 1993, quando ao estacionar o carro diante da Columbia, boate paulistana que não existe mais, foi vítima de um assalto. Durante a confusão, foi alvejado por dois tiros, que se alojaram na espinha e lhe tiraram os movimentos dos membros inferiores.
Alex ficou internado durante três meses e após esse período começou a fazer reabilitação na universidade onde cursava o terceiro ano de nutrição. Passou a viver uma situação irônica: por um lado servia de modelo para os alunos de fisioterapia e neurologia, mas por outro enfrentava as dificuldades de um ambiente inadequado para sua condição. “Apesar de existir uma clínica e médicos disponíveis, os pacientes não conseguiam entrar sem ajuda e muito menos utilizar o ambiente da escola, que não possuía rampas de acesso e banheiros adaptados.”
A musculação surgiu como complemento da natação, parte da fisioterapia que os doutores lhe recomendaram. “Soube, por meio de amigos, que existiam competições para pessoas com deficiências físicas. Como não nadava tão bem, resolvi participar de um campeonato que também tinha halterofilismo e peguei o segundo lugar. Achei que o esporte poderia ser uma forma de competir também com pessoas que não tinham deficiência física e voltar à vida como era antes.”
O atleta fala sobre o acidente e a recuperação sem qualquer traço de rancor. Não há nenhum sinal de angústia em suas palavras. Entre outros fatores, talvez, porque se trata de uma exceção, algo que ele mesmo reconhece. Com a ajuda dos pais conseguiu comprar um veículo adaptado para fugir do constrangimento de aguardar táxis que nunca paravam. “Os motoristas me evitavam porque tinham medo da cadeira rasgar o estofamento”. Também com ajuda da família conseguiu concluir a pós-graduação em nutrição esportiva, que lhe permite prestar consultoria para três academias no período da tarde, após os treinamentos.
A amizade com Júnior começou em 1987. O apoio do treinador desde os primeiros passos foi fundamental para a profissionalização. Coordenador da equipe Panamericana nacional de levantamento de peso, Antônio Júnior prepara outros dois halterofilistas que disputarão o Parapan e um grupo de cegos que participará do mundial desse tipo de deficiência, no Brasil, neste ano. Na academia que comprou há 10 anos, nenhum deles paga pela estrutura ou pelo trabalho do técnico.
Para a modalidade que Alexsander Santos escolheu disputar, as pernas são um empecilho. “No paradesporto, as categorias do halterofilismo só se distinguem por peso. O atleta paraplégico disputa com outros que tem os membros inferiores amputados ou seqüela de poliomielite. Na hora da pesagem, como tenho uma deficiência adquirida, minhas pernas jogam contra”. Assim, enquanto os outros contam apenas com o peso do tronco e dos braços, Alex carrega uma ‘sobrecarga’ que não utiliza e limita a possibilidade de aumento de massa muscular.
Diante dessa dificuldade, assim como acontece com muitos lutadores de boxe, ele teve que perder mais de 20kg para se enquadrar numa categoria com marcas próximas a seu rendimento. Isso quase lhe causou um problema na Paraolimpíada de Sydney, Austrália, em 2000, a primeira que disputou. A dois meses do inicío da prova, eis que o ísquio, um dos ossos que formam o quadril, perfurou sua pele. Como não tem sensibilidade na região, só percebeu o ferimento quando estava num grau avançado de infecção. Entre a cirurgia que precisou enfrentar e a recuperação, ficou parado por 45 dias e sua marca caiu 70 kg. Mesmo com um mês de treino não foi possível voltar à forma ideal. Ainda assim, levantou 185kg, contra 200 do primeiro colocado, patamar que o brasileiro atingia antes da operação.
Quatorze anos após o assalto, o halterofilista avalia que algumas políticas públicas, como a lei de cotas, que obriga a contratação de trabalhadores com deficiência de acordo com o número de funcionários, representa avanço, mas ainda é superficial. “Não adianta contratar se não houver suporte, porque muitos deficientes não têm qualificação. Boa parte de nós não puderam não puderam se preparar diante de problemas como a dificuldade de locomoção. A visão que as pessoas tem dos deficientes físicos mudou, mas o acesso aos espaços públicos ainda é ruim”.
Consciente sobre o papel social, exige apenas o que lhe é de direito. “Sou cobrado igual a você em todos os aspectos, pago os mesmos impostos. Então porque a dificuldade em entrar num restaurante?”
Há um mês Alex mora sozinho, após ter se separado da mulher com quem viveu durante 12 anos e a quem conheceu após o acidente. Sua rotina começa às 07h30 da manhã e termina por volta das 18h30, horário em que nosso papo termina.
Pergunto ao treinador o que falta aos atletas do Parapanamericano e ele responde, sem titubear: “mídia”. “Como os meios de comunicação no Brasil ignoram as Paraolimpíadas não existem patrocinadores. Apenas as Loterias da Caixa bancam todo o evento e assim funciona com todas as categorias. Em 2006, foram R$ 3 milhões para repartir entre todos os competidores nacionais do setor.” Lembre-se disso quando assistir uma propaganda sobre responsabilidade social do banco onde tem conta, nobre leitor.
Por meio do programa Bolsa Atleta, Alex recebe R$ 2.500 mensais, num contrato que vai até a Olimpíada de Pequim e exige exclusividade com o governo federal. Porém, isso só foi possível graças ao 4.º lugar em Sydney. Segundo Antônio Júnior, o valor é razoável para disputar o circuito nacional, mas insuficiente para disputar campeonatos internacionais.
Antes de ir embora, observo o processo que Alexsander Santos repete todos os dias. O técnico conduz a cadeira de rodas até a beira de um colchonete azul sobre uma plataforma. O atleta, sem ajuda do amigo, apóia as mãos espalmadas no encosto da cadeira e se move para o colchonete. Lá, ele fica estirado e começa a aquecer os braços, antes de iniciar uma das 15 séries de levantamento de peso. No final das sessões, ele ergue o equivalente a uma tonelada e meia.
Em 23 dias ele repetirá estes movimentos, porém, só terá três chances, em dois minutos para mostrar o resultado de mais de uma década de luta. Certamente, você não verá isso na Globo.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
Crime e adoção na sede da OAB
Diante da catedral católica, um pastor protestante prega para alguém que eu não consigo ver. Na esquina da Praça da Sé com a João Mendes, cinco prostitutas esperam clientes, encostadas nas portas de vidro da agência do Banco do Brasil, camufladas pela banca de jornais. Meio envergonhado, vou e volto diante delas. Não há nada incomum, a não ser o calor de uma atípica quarta-feira (04) de inverno paulistano.
No salão nobre da sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Secção São Paulo, número 385 da Sé, Margarette Garcia e Heveraldo Galvão apontam ações de combate à homofobia e tratam da adoção em relações homoafetivas. Ela comanda a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi/DPP/DHPP). Ele é advogado e mestre em Direitos Coletivos. Ganhou notoriedade após defender a adoção da menina Theodora, de cinco anos, em dezembro de 2006, por Júnior de Carvalho, 46, e Vasco Pedro da Gama, 38. Pela primeira vez um casal homossexual masculino obteve a guarda de uma criança no Brasil. Apenas outros dois, formados por mulheres, conseguiram parecer favorável: um no Rio Grande do Sul e outro no Rio de Janeiro.
Além da delegada e do advogado, Cássio Silva, da Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual da Cidade de São Paulo (CADS), Márcia Melaré (vice-presidente da OAB SP), Marco Alvarenga (presidente da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB SP), Cláudio Brandini (coordenador do Grupo de Diversidade da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB SP) e Joseph Cruz (representante no Brasil da Gay and Lesbian International Sports Association – Glisa) compõem a mesa, que inicia os debates por volta das 19h30.
Cidadania
“A sociedade ainda não percebeu a importância de uma legislação específica para tratar dos direitos dos homossexuais. A rejeição em aceitar a diferença significa que a opressão contra a comunidade Gay, Lésbica, Bissexual, Travesti e Transgênero (GLBTT) ainda está presente em muitos lugares do mundo”, afirma Alvarenga.
Porém, para Heveraldo Galvão, medidas como a aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 122/2006, que criminaliza a homofobia e atualmente tramita no Senado, não é suficiente para diminuir a violência. “Não adianta fazer lei se a população não está preparada para ela. Temos que organizar um movimento de cidadania e estimular a reflexão sobre o preconceito que carregamos dentro de nós”, sugere.
Antes de apresentar imagens de roupas, tatuagens e armas utilizadas por gangues que praticam crimes de intolerância, Margerette Garcia observa “que os ataques homofóbicos e racistas são planejados para que a vítima sofra muito.” O próprio Decradi nasceu em 2000, após o assassinato de Édson Neris da Silva, espancado na Praça da República, região central de São Paulo, quando andava de mãos dadas com o namorado.
A delegada confirma ainda a sensação de resistência do Poder Judiciário para decretar prisão por crimes de intolerância. “Lutamos também contra o preconceito institucional”, reconhece. Questionada sobre a violência dos policiais contra homossexuais, Margarette saiu em defesa da corporação. “Nós vivemos um momento de reaproximação com o segmento GLBTT. Existe a tentativa de preparação, temos melhorado currículo, mas existem coisas que precisamos mudar na sociedade, como um todo, porque é dentro dela que buscamos o policial. Só não devemos esquecer que em São Paulo ele enfrenta o perigo, lida com a pressão e ainda convive com uma situação econômica muito ruim”, pondera.
Adoação
Apesar de enaltecer a existência de uma ideologia homofóbica, que resulta em problemas como a discriminação profissional, Galvão destacou que ocorreram avanços na Legislação Brasileira. “A Lei municipal 9791, de Juiz de Fora, aprovada em 2000 serviu de base para a criação de outras que impoem sanções administrativas a estabelecimentos que praticam a discriminação por gênero. Dos 27 estados brasileiros, 13 tem legislação anti-homofobia. Em São Paulo, 80 municípios já adotaram mecanismos que tratam da discriminação em razão da orientação sexual”, ressaltou.
De acordo com o advogado o sistema jurídico nacional permite a aceitação legal aos casais homossexuais. Teoricamente, basta que eles demonstrem condições como vida em comum, mútua assistência e capacidade para educação dos filhos.
Porém, o pequeno número de que conseguiu preencher os pré-requisitos das varas Civis, de Direito Familiar ou da Infância e Juventude mostram que ainda é difícil enfrentar os julgamentos que os membros do Judiciário realizam com base em valores pessoais. Uma prova disso foi o próprio caso da menina Theodora. Em 1998, um juiz negou o pedido a Júnior de Carvalho e Vasco Pedro da Gama por classificar a relação como anormal!
O advogado sublinhou que os artigos 41 e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dão garantias aos casais do mesmo sexo. O primeiro atribui a condição de filho ao adotado, independente de qualquer vínculo com pais e parentes e o segundo determina que a adoção pode ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. “Negar a adoção pelo fato das pessoas serem diferentes do padrão habitual e conservador é uma prova de discriminação”, finalizou.
Luiz Carvalho
Diante da catedral católica, um pastor protestante prega para alguém que eu não consigo ver. Na esquina da Praça da Sé com a João Mendes, cinco prostitutas esperam clientes, encostadas nas portas de vidro da agência do Banco do Brasil, camufladas pela banca de jornais. Meio envergonhado, vou e volto diante delas. Não há nada incomum, a não ser o calor de uma atípica quarta-feira (04) de inverno paulistano.
No salão nobre da sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Secção São Paulo, número 385 da Sé, Margarette Garcia e Heveraldo Galvão apontam ações de combate à homofobia e tratam da adoção em relações homoafetivas. Ela comanda a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi/DPP/DHPP). Ele é advogado e mestre em Direitos Coletivos. Ganhou notoriedade após defender a adoção da menina Theodora, de cinco anos, em dezembro de 2006, por Júnior de Carvalho, 46, e Vasco Pedro da Gama, 38. Pela primeira vez um casal homossexual masculino obteve a guarda de uma criança no Brasil. Apenas outros dois, formados por mulheres, conseguiram parecer favorável: um no Rio Grande do Sul e outro no Rio de Janeiro.
Além da delegada e do advogado, Cássio Silva, da Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual da Cidade de São Paulo (CADS), Márcia Melaré (vice-presidente da OAB SP), Marco Alvarenga (presidente da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB SP), Cláudio Brandini (coordenador do Grupo de Diversidade da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB SP) e Joseph Cruz (representante no Brasil da Gay and Lesbian International Sports Association – Glisa) compõem a mesa, que inicia os debates por volta das 19h30.
Cidadania
“A sociedade ainda não percebeu a importância de uma legislação específica para tratar dos direitos dos homossexuais. A rejeição em aceitar a diferença significa que a opressão contra a comunidade Gay, Lésbica, Bissexual, Travesti e Transgênero (GLBTT) ainda está presente em muitos lugares do mundo”, afirma Alvarenga.
Porém, para Heveraldo Galvão, medidas como a aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 122/2006, que criminaliza a homofobia e atualmente tramita no Senado, não é suficiente para diminuir a violência. “Não adianta fazer lei se a população não está preparada para ela. Temos que organizar um movimento de cidadania e estimular a reflexão sobre o preconceito que carregamos dentro de nós”, sugere.
Antes de apresentar imagens de roupas, tatuagens e armas utilizadas por gangues que praticam crimes de intolerância, Margerette Garcia observa “que os ataques homofóbicos e racistas são planejados para que a vítima sofra muito.” O próprio Decradi nasceu em 2000, após o assassinato de Édson Neris da Silva, espancado na Praça da República, região central de São Paulo, quando andava de mãos dadas com o namorado.
A delegada confirma ainda a sensação de resistência do Poder Judiciário para decretar prisão por crimes de intolerância. “Lutamos também contra o preconceito institucional”, reconhece. Questionada sobre a violência dos policiais contra homossexuais, Margarette saiu em defesa da corporação. “Nós vivemos um momento de reaproximação com o segmento GLBTT. Existe a tentativa de preparação, temos melhorado currículo, mas existem coisas que precisamos mudar na sociedade, como um todo, porque é dentro dela que buscamos o policial. Só não devemos esquecer que em São Paulo ele enfrenta o perigo, lida com a pressão e ainda convive com uma situação econômica muito ruim”, pondera.
Adoação
Apesar de enaltecer a existência de uma ideologia homofóbica, que resulta em problemas como a discriminação profissional, Galvão destacou que ocorreram avanços na Legislação Brasileira. “A Lei municipal 9791, de Juiz de Fora, aprovada em 2000 serviu de base para a criação de outras que impoem sanções administrativas a estabelecimentos que praticam a discriminação por gênero. Dos 27 estados brasileiros, 13 tem legislação anti-homofobia. Em São Paulo, 80 municípios já adotaram mecanismos que tratam da discriminação em razão da orientação sexual”, ressaltou.
De acordo com o advogado o sistema jurídico nacional permite a aceitação legal aos casais homossexuais. Teoricamente, basta que eles demonstrem condições como vida em comum, mútua assistência e capacidade para educação dos filhos.
Porém, o pequeno número de que conseguiu preencher os pré-requisitos das varas Civis, de Direito Familiar ou da Infância e Juventude mostram que ainda é difícil enfrentar os julgamentos que os membros do Judiciário realizam com base em valores pessoais. Uma prova disso foi o próprio caso da menina Theodora. Em 1998, um juiz negou o pedido a Júnior de Carvalho e Vasco Pedro da Gama por classificar a relação como anormal!
O advogado sublinhou que os artigos 41 e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dão garantias aos casais do mesmo sexo. O primeiro atribui a condição de filho ao adotado, independente de qualquer vínculo com pais e parentes e o segundo determina que a adoção pode ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. “Negar a adoção pelo fato das pessoas serem diferentes do padrão habitual e conservador é uma prova de discriminação”, finalizou.
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