terça-feira, 9 de setembro de 2008

Fragmentos da independência

Dois dias antes do desfile de sete de setembro, o cadete da aeronáutica Thiago Almeida resolveu recepcionar os cariocas Renato Osório e Danilo Lima, também membros da força aérea brasileira, no Charme da Paulista. Levou junto o patriarca dos Almeida, senhor Carlos, um policial militar aposentado que brindou com todos no bar da Avenida Paulista.

Apenas um homem não integrava o grupo de segurança nacional, justamente aquele que não pagou por qualquer garrafa ou maço de cigarros, mas bebeu e fumou. Sem injustiça, às vésperas da semana da pátria, devo dizer que retribuiu o favor com música.

Ao observar a aproximação de um trio de velhinhos empunhando bumbo, caixa e trompete, Gibran Santos, 28, entendeu o convite e juntou-se a eles para uma sessão de Aquarela do Brasil. Pegou o sax soprano fabricado com canos de PVC e palhetas de EVA e improvisou.

Ainda falta passar fibra de vidro e resina para deixar o som encorpado: o instrumento vibra um pouco e não é capaz de sustentar as notas mais longas. Com esse último toque, não irá falhar.

O quarteto formado pelos velhinhos e o saxofonista entoa alguma coisa que lembra ao senhor Almeida o hino do Corinthians. E ele canta:

“Corinthians graaannndeeee”.
“Porra, você é palmeirense”, diz o filho.
“Foda-se. Música é música”, revida o pai.

“A boquilha é original e igual a de um sax comum”, explica Santos ao comentar que já vendeu cerca de 10 exemplares do modelo por até R$ 500. Normalmente, o preço é a metade disso.

A voz grave se opõe ao corpo franzino de adolescente e ao visual de skatista: boina preta, calça e camisa largas. Gibran Santos cruza a cidade sobre uma tábua preta com quatro rodas azuladas e uma mochila escura. Leva também uma capa para o instrumento de sopro e para o afinador eletrônico adaptado à uma bateria de celular.

Parte do dinheiro para pagar despesas como o apartamento na Vila Madalena onde mora ao lado da atriz formada em Hotelaria, Carolina Mesquita, sai do patrocínio da marca Skate Até Morrer. Outra fatia vem dos trabalhos free-lancer de barman e, claro, há ainda o pedaço que depositam após canções interpretadas no lado de fora do Museu de Arte de São Paulo (MASP), às terças, e na Praça Benedito Calixto, aos sábados. Por noite, tira algo entre R$ 20 e R$ 50. “No Brasil é osso. Tenho um amigo que mora na Irlanda e também toca na rua. Consegue tirar 600 euros. O máximo que consegui foi R$ 150 depois de oito horas de som em um dia de São Silvestre. Até judeu ajudou”. Foi uma bela jornada.

Santos foi registrado em São Paulo, mas nasceu na cidade de Ponta Grossa, Paraná. Até 15 anos foi criado pela avó, mas resolveu vir para a capital paulista tentar a vida com o pai. A química não funcionou bem e optou por morar na rua. Dormiu diversas vezes na Praça Osvaldo Cruz, onde começa a Paulista. Aprendeu a ser auxiliar de cozinha e a fazer artesanato. Jamais pediu esmolas e desde cedo usou a arte como moeda de troca.

O dono de uma pizzaria e uma gaita lhe salvaram a vida. Fascinado pelo talento de um homem chamado Mutamba, o então adolescente começou a se aproximar do músico da Vila Madalena até que este aceitasse ensinar o domínio do instrumento. Inicialmente, o “professor” recusou. “Bebendo desse jeito, com essa idade, não vai longe. Nem vale a pena começar”, lamentou o mestre. Era a fagulha que faltava para maneirar com o álcool. Quem diria: inconscientemente adaptou-se aos novos tempos de Lei Seca. Só dirige skate e um copo de cerveja já é o suficiente.

As influências musicais vão de John Coltrane a Deep Purple. De Dire Straits a Tom Jobim. Gosta também “daquela mulher, como é mesmo o nome? Regina (pausa)...”

“Elis Regina”, digo.
“Isso, minha memória não é boa para nomes.”

Após completar 18 anos, foi morar em uma pensão com a ajuda do pai. Em 2002, na garupa de uma moto foi atingido por um veículo que passava pelo cruzamento da Consolação com a Dona Antônio da Queiroz. Aos 22 anos, perna quebrada, resolveu buscar algo para passar o tempo e encontrar uma forma original de unir diversão e dinheiro. Lembrou do sax de bambu que comprou numa viagem ao Rio de Janeiro e começou a desenhar um aparelho com as ferramentas que possuía em casa. Surgiu o primeiro saxofone artesanal, cujo projeto já foi patenteado. A idéia é buscar patrocinadores para produzir em larga escala e oferecer a escolas.

Planeja ainda comprar uma casa junto com a namorada. Um lugar amplo que sirva de ateliê e oficina para desenvolver outros instrumentos como um trombone.

Desapegado a tudo, define-se como uma pessoa carente, que precisa de colo, mas “não sabe chegar”. A relação com o pai continua distante, tal qual o contato com a mãe, uma mato-grossense a quem só foi apresentado aos 22 anos.

A cultura hippie lhe ensinou sobre o amor: ama os irmãos, inclusive aqueles que não conhece da parte materna. Ama a filha que mora em Itapevi com a ex-namorada. Ama tocar, conversar com os amigos, ler gibis e fumar um porro toda noite antes de dormir para relaxar. “Vivi, curti pra caralho e não deixo de comer ou beber o que tenho vontade.”

Ama, sobretudo, a liberdade. “É o que mais gosto em São Paulo.”