terça-feira, 27 de maio de 2008

Vestidos, buquês e paletós

Sábado, 28 de maio de 2008, véspera da Parada do Orgulho GLBT. Dia de casamento. O espaço está enfeitado com arranjos de flores: rosas, margaridas, crisântemos, véu de noiva e dois cordões de folhas pequenas pregados nas pontas de cada uma das cadeiras, no final das fileiras, divididas em dois grupos. São 136 assentos pretos com estofados vermelhos.

No fundo do auditório há um palco que costuma receber dirigentes sindicais, mas, nessa noite, comporta uma mesa branca de uns dois metros de largura, sobre a qual colocaram um pão do tipo italiano, duas velas amarelas, uma bíblia aberta, um cacho de uvas, um arranjo com as mesmas flores do corredor e um Menorá, espécie de candelabro de sete pontas.

À direita do público que ocupa quase todos os assentos ficam três pedestais de microfones, os quais Luana Moreira, uma cantora de voz muito bonita e um piercing no lábio inferior direito, utiliza para ensaiar canções de louvor a Deus. Antes do início da cerimônia, os suportes iriam para a esquerda e dariam lugar aos noivos e ao pastor.

Perto da cortina preta atrás da mesa, mais dois arranjos de flores com o dobro do tamanho daqueles em cima da mesa e daqueles próximos ao corredor.

Os padrinhos e os convidados, a maior parte formalmente vestida, começa a chegar. Na porta, José Antônio, mais conhecido como Tony, e Ricardo, membros da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), distribuem o roteiro da cerimônia, que apresenta também uma breve história da entidade e a lista de parceiros que apóiam a celebração.

O panfleto traz, além do nome de parlamentares brasileiros e sindicatos, o Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades, a Associação da Parada do Orgulho GLBT em São Paulo e a Católicas pelo Direito de Decidir, “entidade feminista, de caráter inter-religioso, que busca justiça social e mudança de padrões culturais e religiosos vigentes em nossa sociedade, respeitando a diversidade como necessária à realização da liberdade e da justiça”, conforme define o release do grupo mais conhecido por defender a legalização do aborto.

Antônio comenta que alguns convidados confundiram-se com a presença da Igreja Nossa Senhora do Líbano, logo em frente, mas logo perceberam que o matrimônio para o qual foram convidados estava do outro lado da calçada.

Um telão de cerca de três metros começa a baixar do lado direito do público, esquerdo de quem está no palco. Mesmo com a decoração em tom primaveril, os quadros com imagens de assembléias e outros marcos do ramo químico permaneceram pendurados nas paredes do auditório do Sindicato dos Trabalhadores Químicos do Estado de São Paulo.

Às sete e quarenta da noite, com uma hora de atraso, a cerimônia começa. Primeiro, um vídeo que apresenta a ICM e destaca a trajetória do Reverendo Troy Perry. Nem primavera de Praga, nem maio de Paris. O que realmente aconteceu de importante em 1968 para aquele grupo de cristãos do segmento GLBTT que se reúne, pela primeira vez, para a celebração coletiva da benção de união de casais homoafetivos foi o nascimento, nos Estados Unidos da América, da Igreja da Comunidade Metropolitana.

Perry, homossexual norte-americano, acreditou, segundo o curta-metragem, no desejo de viver a mensagem de Jesus de forma a incluir. “Não há nenhum lugar no Evangelho em que Jesus tenha condenado a homossexualidade. Jesus veio e morreu por meus pecados, não por minha sexualidade”. Em silêncio absoluto, o público permanece atento ao vídeo do reverendo. Alguns homens, aconchegados no escuro da sala, encostam a cabeça no ombro dos companheiros. O mesmo acontece com um casal de mulheres, com tranças azuis nos cabelos. Ninguém olha abismado quando os casais se beijam ou passeiam de mãos dadas. No final, aplausos da platéia.

O orador pede a Beto de Jesus, representante da América Latina e do Caribe da Associação Internacional de Gays e Lésbicas e membro da direção da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, para subir ao palco. Após um selinho no homem que segurava o microfone, ele diz: “nos tiraram muitos direitos e um deles é nossa profissão de fé. Estar aqui hoje é dizer que Deus, os deuses, as deusas são nossos e não vão nos tirar isso.”

Odézia Rodrigues, da Rede Nacional de Religiões Afro Brasileiras e Saúde complementa: “eu venho de uma família católica, com tradição católica e senti na pele o que é preconceito. Tenho orgulho de encontrar as matrizes africanas, meu berço, meu axé”, disse, para depois falar sobre sua profissão e classificá-la como um ato de amor. “O amor ao próximo é saúde e quando lidamos com um enfermo não levamos apenas medicamento, mas também nossa vibração. Estamos aqui essa noite por amor.”

Às oito e vinte, após o DJ errar o fundo musical por duas vezes e colocar o início da Marcha Nupcial, os padrinhos descem a rampa íngreme do sindicato sob uma sinfonia que desconheço. O processo é rápido, dura menos de dois minutos e depois, novamente, a Marcha Nupcial toma o salão. Dessa vez, é a música certa.

No início da fila, Suzane Araújo, 39 anos, e Noemi Miranda, 47, caminham lentamente sobre um tapete vermelho, trajadas com vestidos da cor prata. O casal que se conheceu em uma sala de bate-papo GLS na Internet e está junto há três anos, segue logo após Clarice, 18, e Gabriel, 20, respectivamente, filha e genro de Noemi, mas, nesta noite, madrinha e padrinho das noivas, que acomodam-se na primeira fileira de cadeiras. Trouxeram também Arthur, o neto de seis meses de ambas.

Noemi foi casada durante três anos (parece um número cabalístico) e há 17 está divorciada. Ele é professora há uma década, enquanto Suzane estuda para ser esteticista. “A cerimônia de hoje serve apenas para formalizar, porque já moramos juntas”, diz Suzane. Clarice, a filha, comenta que nunca teve preconceito, que acha normal a mãe casar com uma mulher. “Isso é graças à criação que ela teve”, comenta Suzane, a mais extrovertida.

Ao lado de ambas, tanto Luiz Ramires e Guilherme Nunes, quanto Maria Venâncio e Marlene Sturari, os outros dois casais, permanecem de mãos dadas.

Com o sexteto à direita do auditório, o pastor Cristiano da Silva inicia o ritual. Entre agradecimentos a Deus (“damos-te graças porque esse amor foi capaz de vencer todas as barreiras”), ele comanda o evento. Há espaço, porém, para Yuri Orozco, apresentada como teóloga e feminista do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, encaixar mais um discurso. “Estamos aqui porque acreditamos que um mundo mais humano e justo é possível.”

Após a liturgia da palavra, Levi de Souza, um dos três cantores da noite, interpreta “Monte Castelo”, canção da Legião Urbana. “Um tempo sagrado e justo está começando. Celebramos as coisas boas da vida e hoje celebramos uma conquista: o amor de vocês”, retoma a palavra o pastor, que evoca justiça, importância do amor romântico e do divino. “Falaram que relações do mesmo sexo são pecaminosas. Não tocarás o divino! Deus nos criou para sermos livres e nos quer felizes. Hoje é tempo de rever nossos conceitos.”

Juras de amor. Chegou a hora de trocar alianças que chegam numa bandeja de prata decorada com flores, e prometer fidelidade na felicidade e na desventura, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença. Prometer amar e querer até o dia em que morte vier. Chegou a hora do noivo beijar o noivo e da noiva beijar a noiva. Chegou a hora de descobrir que Suzane e Noemi são tímidas e apenas tocam os lábios após incentivo do público presente.

Porém, para o pastor Cristiano Silva, o ápice de cerimônia é agora. Trata-se da última parte do ritual: a benção dos casais. A Reverenda Bispa Darlene Garner, então, faz-se presente diretamente do México. Coordenadora da região latino americana e da região do sul dos EUA da ICM, ele envia uma mensagem que o orador resume, “pelo adiantado da hora.”

Os noivos assinam o livro de registro de uniões da Igreja e, no alto falante, Elton John canta “Can You Feel The Love Tonight”, capaz de arrancar coreografias da platéia. Recém-casadas, Suzane e Noemi sobem para a quadra do sindicato, transformada em salão de festas. Levam numa mão um certificado e na outra um buquê, a sete dias do fim do mês das noivas. E dos noivos.