terça-feira, 22 de abril de 2008

O Julgamento

Com uma das agências do Itaú atrás de suas botas e carabina, um posto de gasolina da Via Brasil à direita, uma loja do Mc Donalds à frente e o edifício Bandeirante Borba Gato, de 17 andares, à esquerda, ele observava, imóvel feito estátua, uma manifestação diferente no último dia 19 de abril.

Quem sabe em outros anos, no “Dia do Índio”, tenha lembrado dos feitos que alguns consideram heróicos. Certamente, não aqueles que o cercaram na manhã do último sábado, em plena Praça Augusto Tortorello de Araújo, em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo.

De pés descalços sobre a grama, aos 16 anos, Marcos Oliveira, freqüentador do sarau da Cooperifa, deixou o Largo Treze, também zona sul da capital paulista, para engatilhar poesia. Os versos deixaram claro ao monumento de Borba Gato, diante do qual o garoto se posicionou, que a imagem do ‘desbravador’, ao menos entre a meia centena de representantes de movimentos culturais daquele lado da cidade, não é das melhores: “Essa terra tem mil deuses / um deles que me conduz / essa terra tem canções e cantigas / mas o ouro dos brasões / veio abrir nossa ferida / essa terra é muito antiga / essa terra é muito antiga / repousa os pés na estrada / a cada passada / o nosso descanso / embalado pelo canto / em qualquer canto / desbravando os brasis / se as veias estão abertas / seremos a cicatriz.”

Antes de Oliveira, Binho, idealizador de um sarau que acontece no Bairro do Campo Limpo, abriu a artilharia por volta do meio-dia, após cumprimentar a todos com um bom dia em guarani, que começou a estudar com um catalão na região da Avenida Cerro Corá. Assim declamou: “Gasolinar mendigos, indígenas / é o barato da playboyzada / fuder com povos e países / numa canetada só / é o caro dos pais da playboyzada / a herança é um roubo (parafuseando).”

A ativista sócio-cultural Graça Cremon destacou: “Há algum tempo existe grande descontentamento em termos um herói como Borba Gato, com essa arma na mão, com essa proporção, na entrada de Santo Amaro. Em São Paulo, todas as rodovias, o Palácio do governo tem nome de referências da cultura opressora. O Brasil também é milenar, não temos apenas 500 anos. Queremos destacar também a cultura brasilista”, ressaltou ela, integrante de um movimento, segundo disse, sem coordenador, organizado, principalmente, via e-mails.

As acusações
Pesavam contra o réu, acusações de trabalho escravo de negros e índios, estupro de mulheres negras e índias, assassinato para obtenção de riquezas e poder e massacre de culturas nativas, tudo isso expresso no panfleto que chegava aos motoristas de ônibus e de automóveis parados em um semáforo próximo à praça.

Itamar Augusto, membro do Instituto das Tradições Indígenas (IDETI), organização paulista que surgiu em 1999, filmava tudo. “Não somos a favor de derrubar o monumento, mas queremos que saibam o que representa. Quais são nossos heróis? Você nunca vê a estátua de um índio num local privilegiado”, comentou.

Resolvi, então, observar Borba, apenas para tentar saber o que pensava sobre tudo isso, no alto do mosaico de pedras que o compõe. Notei apenas um ferimento em seu joelho esquerdo, porém, pelo que percebi, fruto do tempo, nada que tivesse sido causado pelos homens e mulheres de rostos pintados, que dançavam desengonçadamente ao som de Ceu, Mestre Ambrósio e outros nomes da MPB ‘moderna’ que habitualmente funciona como trilha sonora nos carros de som dos movimentos sociais.

Aos poucos, a imagem do bandeirante ganhava adereços como cartazes a seus pés. Um deles, marrom, pintado com caneta azul informava o que acontecia no local. Outro afirmava: “Eu converto ou mato o outro”. Como se fosse um desses homens-sanduíche do centro da cidade que vestem placas indicando, “vendo ouro”, uma garotinha de uns 10 anos trazia no peito, “somos todos índios”. Um dos mais interessantes, pendurado num arbusto no canteiro próximo à praça, lembrou outro desbravador paulista, o ex-prefeito, Paulo Maluf: “Estupra, mas não mata! Borba”. E por aí vai.

Findo o sarau, era vez da antropofagia. Em performance teatral, faltando quinze minutos para uma hora da tarde, a Companhia Antropofagia interpretou o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval”, disse ele, há sessenta anos.

Chegou, então, a hora do prato principal. Após distribuir três folhas que apontavam o papel da defesa e da acusação na encenação, Graça destacou para os dois lados: “vale o coro, todos são protagonistas”.

O juiz abriu a sessão: “Estamos aqui porque produtores culturais, ativistas e cidadãos da cidade de São Paulo de Piratininga querem questionar a história oficial e, a partir dessa ação reconstruir a história do povo nativo: o nosso povo!”.

Umas das fundadoras do PT e agora membro do PSTU, a atriz Dulce Muniz era uma velha índia que apontava os dados históricos sobre o etnocídio brasileiro. Ao lado dela, uma pequena intérprete representava os sobreviventes das aldeias brasileiras, tocando flauta, enquanto Dulce lembrava que o número de índios assassinados cresceu 61,4%, entre 2006 e 2007, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário.

Será que Borba pensou, “e ainda querem me julgar?”.

O promotor acusou e a defesa rebateu: “Povo ingrato! Povo Ingrato! / O acusado de fato / Merece trato de herói! / Tudo aquilo que constrói / Que o progresso traz de fato / Veio com esse cidadão / Que chamamos Borba Gato / Viu esse Pyndorama / Um lugar pra prosperar / Nos caminhos que abria / Riquezas a revelar / Pôs suas ordem na bagunça / Que considerou “geral” / E não digam que atuou / Para o bem de Portugal!” Seguem palavras de Dulce, do juiz, do promotor, novamente Dulce e, finalmente, o juiz decreta: “Quem decide aqui é o povo, isso é júri popular!”

Borba Gato já sabia da sentença: culpado! Entre as penas propostas pelo público, “fica condenado a viver como estátua, estagnada, deteriorando com o tempo, sob o cocô dos pássaros”. Teve quem propusesse colocar grades ao seu redor “para mostrar que gente rica que estupra, mata, rouba também pode ficar presa”.

Mais pragmático, Binho sugeriu que “o valor dos pedágios das avenidas que levam nome de jagunço fossem revertidos para as nações indígenas”.

Atingida por poesia, música e teatro, a obra que surgiu em 1960, pelas mãos do escultor Júlio Guerra, permaneceu intacta, sem marcas de pichações, depredações ou qualquer avaria.

Por fim, como não poderia deixar de ser, sambão e festa.