Por Luís Fernando Carvalho *
Caros leitores, queridas leitoras, respeitável público: a primeira vez com peru é inesquecível e leva três dias. No primeiro dia, existe até peru mecânico – ao invés de touro mecânico – para testar o equilíbrio. O segundo dia é meio morno, como se estivesse ali, localizado bem no meio do evento fantástico, a fim de garantir fôlego suficiente para algo desconhecido, uma sensação que está por vir. Então, no terceiro dia, o auge, o êxtase, a explosão de felicidade e prazer, alegrias maravilhosas que tomam conta de todo o ser.
Calma, calma! Eu posso explicar! A Peruada é um evento tradicional da Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo São Francisco e carinhosamente chamada de SanFran. Ocorre anualmente, na terceira sexta-feira de outubro, sendo considerada uma manifestação político-etílico-circo-carnavalesca, cujas origens alguns dizem remontar a 1948, quando membros do Centro Acadêmico XI de Agosto furtaram nove perus de raça premiados na Exposição Nacional de Animais do Parque da Água Branca e com eles se banquetearam. Na verdade, há registros de memoráveis festas estudantis organizadas para a “libertação” dos calouros dos suplícios do trote: em 1932, um estudante fantasiou-se de Oswaldo Aranha, vestiu a camisa negra do fascismo e fez malabarismos com um chuchu, que simbolizava Getúlio Vargas.
No primeiro dia, ocorre o chamado Grito do Peru. O famoso Vitão, membro do Diretório Jurídico carinhosamente e informalmente incorporado como patrimônio histórico-cultural da SanFran, abre as festividades de uma maneira bastante excêntrica: segurando um peru – vivo – à frente de um grupo composto por duas mulatas que sambam primorosamente e uma banda de senhores tocando marchinhas de carnaval. Todo o grupo sai do Porão, adentra a Faculdade pelo corredor lateral, na rua Riachuelo, e literalmente dizima as aulas em todas as salas, começando pelas do térreo, onde boa parte dos calouros estudam. Cumprida a primeira parte da tradição, junta-se ao grupo a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco – BAISF – e a folia definitivamente toma conta das Arcadas, com o samba animando os estudantes até na sua empreitada sobre o peru mecânico. Mais tarde, precisamente às XI e 08 da noite, ocorre a cervejada pré-peruada, e a “lascívia acumulada” começa a ser liberada.
Desde seus primórdios, a festa não ocorreu apenas de 1974 a 1982, por conta da repressão e censura dos governos militares. Seu nome está ligado ao hábito caboclo de dar pinga aos perus, tonteando-os antes do sacrifício. Assim, considerando que os estudantes – calouros ou não – sorvem o ardente líquido com a mesma submissão e posterior volúpia que os animais em questão, percebe-se facilmente o caráter etílico do evento e a pertinência de sua graça. Aliás, existem antigos alunos que não mais freqüentam o maior evento franciscano justamente porque consideram que ele perdeu seu caráter político, focando somente no etílico. A crítica não é totalmente verdadeira, mas por pouco: os estudantes festejam a Peruada basicamente como uma “micareta open bar”, enchendo a cara de cerveja, vodca e jurupinga, além dos artefatos alcoólicos trazidos de casa, como bebidas cujo aroma não é lá muito agradável e cuja aparência faz lembrar os famosos vinhos “sangue de boi” interioranos.
A paquera também corre solta pela festa, digamos, no formato de pegação desenfreada. Seguindo fielmente os princípios dos Tribalistas, segundo os quais “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, a massa estudantil une seu estado “etilizado” aos feromônios, resultando numa operação de solta e agarra – diferentemente da operação Satiagraha, esta é efetiva – à luz do dia, nas ruas do centro paulistano.
Neste ano, entoando louca e roucamente os primeiros versos do hino do evento – Vai, vai, vai começar a brincadeira / Tem cerveja de graça a tarde inteira / Vem soltar a lascívia acumulada / Vai, vai, vai começar a Peruada – por quase todo o tempo, os jovens se mostraram animados desde a concentração, no número 138 do Largo do Paissandu. A brincadeira, então, seguiu pelas avenidas São João, Ipiranga e São Luís, atravessou os viadutos Nove de Julho e Jacareí – com uma parada em frente à Câmara Municipal para protestar –, passou pela Rua Maria Paula, subiu o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, seguiu pelo Largo São Francisco e pela rua Líbero Badaró, até finalmente contornar a praça Ramos de Azevedo e retornar ao local de origem, lá permanecendo até a noite.
Os protestos, que ocorreram especialmente em frente à Câmara Municipal, refletiram-se nas fantasias e alegorias vestidas e utilizadas pelos participantes. Havia dois rapazes cujos trajes aludiam aos dois militares gays do Exército. O casal buscava chamar a atenção para o preconceito: os chapéus usados por eles tinham detalhes em rosa, bastante chamativos. Havia, ainda, duas moças simbolizando Lehman Brothers, nitidamente satirizando a crise econômica iniciada nos Estados Unidos. Outras belas jovens, em referência à Lei Seca, vestiam-se de táxis, cujas placas traziam os dizeres “Em tempos de Lei Seca, pegue um táxi!”. Foram consagrados no concurso das melhores fantasias políticas e críticas o Vendedor de Habeas Corpus, a Pizzaria 3 Poderes – cuja fantasia relembrava os escândalos com cartões corporativos do governo federal –, os Bobos da Suprema Corte e o grupo do Tio Sam de Calças Curtas.
A festa nas ruas não ficou restrita a universitários. Aliás, longe disso: havia quase uma centena de policiais militares incumbidos de zelar pela segurança, técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego – afinal, centro de São Paulo é centro de São Paulo –, trabalhadores, transeuntes e até mendigos e catadores de latinhas, todos bastante animados, embora muitos sequer soubessem do que é que se tratava aquele “monte de gente pulando com música alta”, nas palavras de um senhor que recolhia latinhas de refrigerante e cerveja enquanto aproveitava todo o aparato musical para, também ele, dançar conforme o ritmo.
Já sem condições inclusive de falar, mas com enorme esforço para resgatar o mínimo de voz na garganta, aqueles que ainda se mantinham de pé cantaram, com sentimento ligeiramente melancólico, os quatro últimos versos do hino da peruada, de autoria de Eduardo Calvert: Vai, vai, vai terminar a brincadeira / Que a cerveja rolou a tarde inteira / Morre o sol, faz-se sombra nas Arcadas / Vai, vai, vai terminar a Peruada.
* Luís Fernando Carvalho, 23. Formado em Relações Internacionais pela Unesp (Franca - 2007), estuda na Faculdade de Direito da USP, trabalha e mora no centro de São Paulo. Viaja muito pelo estado e crê que sua vida seria bem mais próspera se ganhasse milhagens para suas incontáveis viagens de ônibus. Em 2008, participou pela primeira vez da Peruada.
Caros leitores, queridas leitoras, respeitável público: a primeira vez com peru é inesquecível e leva três dias. No primeiro dia, existe até peru mecânico – ao invés de touro mecânico – para testar o equilíbrio. O segundo dia é meio morno, como se estivesse ali, localizado bem no meio do evento fantástico, a fim de garantir fôlego suficiente para algo desconhecido, uma sensação que está por vir. Então, no terceiro dia, o auge, o êxtase, a explosão de felicidade e prazer, alegrias maravilhosas que tomam conta de todo o ser.
Calma, calma! Eu posso explicar! A Peruada é um evento tradicional da Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo São Francisco e carinhosamente chamada de SanFran. Ocorre anualmente, na terceira sexta-feira de outubro, sendo considerada uma manifestação político-etílico-circo-carnavalesca, cujas origens alguns dizem remontar a 1948, quando membros do Centro Acadêmico XI de Agosto furtaram nove perus de raça premiados na Exposição Nacional de Animais do Parque da Água Branca e com eles se banquetearam. Na verdade, há registros de memoráveis festas estudantis organizadas para a “libertação” dos calouros dos suplícios do trote: em 1932, um estudante fantasiou-se de Oswaldo Aranha, vestiu a camisa negra do fascismo e fez malabarismos com um chuchu, que simbolizava Getúlio Vargas.
No primeiro dia, ocorre o chamado Grito do Peru. O famoso Vitão, membro do Diretório Jurídico carinhosamente e informalmente incorporado como patrimônio histórico-cultural da SanFran, abre as festividades de uma maneira bastante excêntrica: segurando um peru – vivo – à frente de um grupo composto por duas mulatas que sambam primorosamente e uma banda de senhores tocando marchinhas de carnaval. Todo o grupo sai do Porão, adentra a Faculdade pelo corredor lateral, na rua Riachuelo, e literalmente dizima as aulas em todas as salas, começando pelas do térreo, onde boa parte dos calouros estudam. Cumprida a primeira parte da tradição, junta-se ao grupo a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco – BAISF – e a folia definitivamente toma conta das Arcadas, com o samba animando os estudantes até na sua empreitada sobre o peru mecânico. Mais tarde, precisamente às XI e 08 da noite, ocorre a cervejada pré-peruada, e a “lascívia acumulada” começa a ser liberada.
Desde seus primórdios, a festa não ocorreu apenas de 1974 a 1982, por conta da repressão e censura dos governos militares. Seu nome está ligado ao hábito caboclo de dar pinga aos perus, tonteando-os antes do sacrifício. Assim, considerando que os estudantes – calouros ou não – sorvem o ardente líquido com a mesma submissão e posterior volúpia que os animais em questão, percebe-se facilmente o caráter etílico do evento e a pertinência de sua graça. Aliás, existem antigos alunos que não mais freqüentam o maior evento franciscano justamente porque consideram que ele perdeu seu caráter político, focando somente no etílico. A crítica não é totalmente verdadeira, mas por pouco: os estudantes festejam a Peruada basicamente como uma “micareta open bar”, enchendo a cara de cerveja, vodca e jurupinga, além dos artefatos alcoólicos trazidos de casa, como bebidas cujo aroma não é lá muito agradável e cuja aparência faz lembrar os famosos vinhos “sangue de boi” interioranos.
A paquera também corre solta pela festa, digamos, no formato de pegação desenfreada. Seguindo fielmente os princípios dos Tribalistas, segundo os quais “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, a massa estudantil une seu estado “etilizado” aos feromônios, resultando numa operação de solta e agarra – diferentemente da operação Satiagraha, esta é efetiva – à luz do dia, nas ruas do centro paulistano.
Neste ano, entoando louca e roucamente os primeiros versos do hino do evento – Vai, vai, vai começar a brincadeira / Tem cerveja de graça a tarde inteira / Vem soltar a lascívia acumulada / Vai, vai, vai começar a Peruada – por quase todo o tempo, os jovens se mostraram animados desde a concentração, no número 138 do Largo do Paissandu. A brincadeira, então, seguiu pelas avenidas São João, Ipiranga e São Luís, atravessou os viadutos Nove de Julho e Jacareí – com uma parada em frente à Câmara Municipal para protestar –, passou pela Rua Maria Paula, subiu o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, seguiu pelo Largo São Francisco e pela rua Líbero Badaró, até finalmente contornar a praça Ramos de Azevedo e retornar ao local de origem, lá permanecendo até a noite.
Os protestos, que ocorreram especialmente em frente à Câmara Municipal, refletiram-se nas fantasias e alegorias vestidas e utilizadas pelos participantes. Havia dois rapazes cujos trajes aludiam aos dois militares gays do Exército. O casal buscava chamar a atenção para o preconceito: os chapéus usados por eles tinham detalhes em rosa, bastante chamativos. Havia, ainda, duas moças simbolizando Lehman Brothers, nitidamente satirizando a crise econômica iniciada nos Estados Unidos. Outras belas jovens, em referência à Lei Seca, vestiam-se de táxis, cujas placas traziam os dizeres “Em tempos de Lei Seca, pegue um táxi!”. Foram consagrados no concurso das melhores fantasias políticas e críticas o Vendedor de Habeas Corpus, a Pizzaria 3 Poderes – cuja fantasia relembrava os escândalos com cartões corporativos do governo federal –, os Bobos da Suprema Corte e o grupo do Tio Sam de Calças Curtas.
A festa nas ruas não ficou restrita a universitários. Aliás, longe disso: havia quase uma centena de policiais militares incumbidos de zelar pela segurança, técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego – afinal, centro de São Paulo é centro de São Paulo –, trabalhadores, transeuntes e até mendigos e catadores de latinhas, todos bastante animados, embora muitos sequer soubessem do que é que se tratava aquele “monte de gente pulando com música alta”, nas palavras de um senhor que recolhia latinhas de refrigerante e cerveja enquanto aproveitava todo o aparato musical para, também ele, dançar conforme o ritmo.
Já sem condições inclusive de falar, mas com enorme esforço para resgatar o mínimo de voz na garganta, aqueles que ainda se mantinham de pé cantaram, com sentimento ligeiramente melancólico, os quatro últimos versos do hino da peruada, de autoria de Eduardo Calvert: Vai, vai, vai terminar a brincadeira / Que a cerveja rolou a tarde inteira / Morre o sol, faz-se sombra nas Arcadas / Vai, vai, vai terminar a Peruada.
* Luís Fernando Carvalho, 23. Formado em Relações Internacionais pela Unesp (Franca - 2007), estuda na Faculdade de Direito da USP, trabalha e mora no centro de São Paulo. Viaja muito pelo estado e crê que sua vida seria bem mais próspera se ganhasse milhagens para suas incontáveis viagens de ônibus. Em 2008, participou pela primeira vez da Peruada.