sexta-feira, 20 de julho de 2007

Uma tonelada e meia
Luiz Carvalho

Alexsander Whitaker Santos é atleta profissional, tem 37 anos e integra uma delegação de halterofilistas que estará nos jogos do Rio de Janeiro. Porém, ele entra em cena somente a partir do início do mês que vem.

Tarde de sábado, ele bate papo, ao lado do instrutor, Antônio Augusto Ferreira Júnior, com um aluno da academia Projeto A4, na zona norte de São Paulo, onde treina diariamente. Em fase final de preparação, durante três dias Alex faz exercícios específicos de levantamento de peso e nos demais, condicionamento físico para disputar o Parapanamericanos, que começa no dia 12 de agosto e termina no dia 19.

Vestido com uma camiseta branca onde se lê, “limite é um lugar que não existe”, bermuda bege, um par de tênis azul e uma cadeira de rodas, o bi campeão mundial, hepta campeão brasileiro entre atletas com deficiência, bi brasileiro em disputa que inclui não deficientes e recordista sul americano também entre não deficientes, começa a contar sua história. No espaço de 2 mil metros quadrados ele lembra do dia 29 de junho de 1993, quando ao estacionar o carro diante da Columbia, boate paulistana que não existe mais, foi vítima de um assalto. Durante a confusão, foi alvejado por dois tiros, que se alojaram na espinha e lhe tiraram os movimentos dos membros inferiores.

Alex ficou internado durante três meses e após esse período começou a fazer reabilitação na universidade onde cursava o terceiro ano de nutrição. Passou a viver uma situação irônica: por um lado servia de modelo para os alunos de fisioterapia e neurologia, mas por outro enfrentava as dificuldades de um ambiente inadequado para sua condição. “Apesar de existir uma clínica e médicos disponíveis, os pacientes não conseguiam entrar sem ajuda e muito menos utilizar o ambiente da escola, que não possuía rampas de acesso e banheiros adaptados.”

A musculação surgiu como complemento da natação, parte da fisioterapia que os doutores lhe recomendaram. “Soube, por meio de amigos, que existiam competições para pessoas com deficiências físicas. Como não nadava tão bem, resolvi participar de um campeonato que também tinha halterofilismo e peguei o segundo lugar. Achei que o esporte poderia ser uma forma de competir também com pessoas que não tinham deficiência física e voltar à vida como era antes.”

O atleta fala sobre o acidente e a recuperação sem qualquer traço de rancor. Não há nenhum sinal de angústia em suas palavras. Entre outros fatores, talvez, porque se trata de uma exceção, algo que ele mesmo reconhece. Com a ajuda dos pais conseguiu comprar um veículo adaptado para fugir do constrangimento de aguardar táxis que nunca paravam. “Os motoristas me evitavam porque tinham medo da cadeira rasgar o estofamento”. Também com ajuda da família conseguiu concluir a pós-graduação em nutrição esportiva, que lhe permite prestar consultoria para três academias no período da tarde, após os treinamentos.

A amizade com Júnior começou em 1987. O apoio do treinador desde os primeiros passos foi fundamental para a profissionalização. Coordenador da equipe Panamericana nacional de levantamento de peso, Antônio Júnior prepara outros dois halterofilistas que disputarão o Parapan e um grupo de cegos que participará do mundial desse tipo de deficiência, no Brasil, neste ano. Na academia que comprou há 10 anos, nenhum deles paga pela estrutura ou pelo trabalho do técnico.

Para a modalidade que Alexsander Santos escolheu disputar, as pernas são um empecilho. “No paradesporto, as categorias do halterofilismo só se distinguem por peso. O atleta paraplégico disputa com outros que tem os membros inferiores amputados ou seqüela de poliomielite. Na hora da pesagem, como tenho uma deficiência adquirida, minhas pernas jogam contra”. Assim, enquanto os outros contam apenas com o peso do tronco e dos braços, Alex carrega uma ‘sobrecarga’ que não utiliza e limita a possibilidade de aumento de massa muscular.

Diante dessa dificuldade, assim como acontece com muitos lutadores de boxe, ele teve que perder mais de 20kg para se enquadrar numa categoria com marcas próximas a seu rendimento. Isso quase lhe causou um problema na Paraolimpíada de Sydney, Austrália, em 2000, a primeira que disputou. A dois meses do inicío da prova, eis que o ísquio, um dos ossos que formam o quadril, perfurou sua pele. Como não tem sensibilidade na região, só percebeu o ferimento quando estava num grau avançado de infecção. Entre a cirurgia que precisou enfrentar e a recuperação, ficou parado por 45 dias e sua marca caiu 70 kg. Mesmo com um mês de treino não foi possível voltar à forma ideal. Ainda assim, levantou 185kg, contra 200 do primeiro colocado, patamar que o brasileiro atingia antes da operação.

Quatorze anos após o assalto, o halterofilista avalia que algumas políticas públicas, como a lei de cotas, que obriga a contratação de trabalhadores com deficiência de acordo com o número de funcionários, representa avanço, mas ainda é superficial. “Não adianta contratar se não houver suporte, porque muitos deficientes não têm qualificação. Boa parte de nós não puderam não puderam se preparar diante de problemas como a dificuldade de locomoção. A visão que as pessoas tem dos deficientes físicos mudou, mas o acesso aos espaços públicos ainda é ruim”.

Consciente sobre o papel social, exige apenas o que lhe é de direito. “Sou cobrado igual a você em todos os aspectos, pago os mesmos impostos. Então porque a dificuldade em entrar num restaurante?”

Há um mês Alex mora sozinho, após ter se separado da mulher com quem viveu durante 12 anos e a quem conheceu após o acidente. Sua rotina começa às 07h30 da manhã e termina por volta das 18h30, horário em que nosso papo termina.

Pergunto ao treinador o que falta aos atletas do Parapanamericano e ele responde, sem titubear: “mídia”. “Como os meios de comunicação no Brasil ignoram as Paraolimpíadas não existem patrocinadores. Apenas as Loterias da Caixa bancam todo o evento e assim funciona com todas as categorias. Em 2006, foram R$ 3 milhões para repartir entre todos os competidores nacionais do setor.” Lembre-se disso quando assistir uma propaganda sobre responsabilidade social do banco onde tem conta, nobre leitor.

Por meio do programa Bolsa Atleta, Alex recebe R$ 2.500 mensais, num contrato que vai até a Olimpíada de Pequim e exige exclusividade com o governo federal. Porém, isso só foi possível graças ao 4.º lugar em Sydney. Segundo Antônio Júnior, o valor é razoável para disputar o circuito nacional, mas insuficiente para disputar campeonatos internacionais.

Antes de ir embora, observo o processo que Alexsander Santos repete todos os dias. O técnico conduz a cadeira de rodas até a beira de um colchonete azul sobre uma plataforma. O atleta, sem ajuda do amigo, apóia as mãos espalmadas no encosto da cadeira e se move para o colchonete. Lá, ele fica estirado e começa a aquecer os braços, antes de iniciar uma das 15 séries de levantamento de peso. No final das sessões, ele ergue o equivalente a uma tonelada e meia.

Em 23 dias ele repetirá estes movimentos, porém, só terá três chances, em dois minutos para mostrar o resultado de mais de uma década de luta. Certamente, você não verá isso na Globo.