terça-feira, 29 de abril de 2008

Virada Cultural: viola para salvar a cidade

Ainda há esperança para a cidade. Foi isso que percebi logo na madrugada de sábado (26), quando tive de circular pelas ruas de São Paulo e vi dezenas de pessoas, montes de famílias andando sem competição.

Na manhã de domingo (26), enquanto caminhava do meu apartamento, na Rua da Mooca, até o Centro o cenário era idêntico.

Uma bandeira do Flamengo pendurada na janela de um prédio decadente da Rua Carlos Garcia me fez lembrar que também era dia de Flamengo x Botafogo, primeira partida da final do Campeonato Carioca.

Uma quadra depois, outra bandeira, agora do Palmeiras, que o vendedor ambulante negociava no semáforo, também dizia que seria o penúltimo passo na caminhada do verde rumo ao fim da fila, contra o time da Ponte Preta, no primeiro jogo da final do Paulistão.

Meu destino era a Rua Canteira, entrada do Mercado Municipal de São Paulo, famoso pelos generosos sanduíches de mortadela. Dessa vez, porém, não fui para comer, até porque estava quase sem um puto no bolso. Ao menos até tatear a bermuda jeans preta e encontrar uma nota de R$ 5, perdida, que usei para comprar água e voltar para casa de metrô.

Parei, então, em frente ao palco “Mercado Caipira”, parte da Virada Cultural que começou às 18h do sábado e se estendeu até às seis da tarde do domingo.

Diante de um fundo preto, João Mulato e João Carvalho me lembraram o senhor Sílvio Corrêa de Carvalho, meu pai, cantando junto, com os olhos marejados, as músicas dos grupos que se apresentam no Viola Minha Viola, programa de TV de Inezita Barroso. Histórias de praças, bares, boiadas, opressão, solidão, amores. Acima de tudo, verdadeiros tratados de honestidade.

Vestido com terno e calça preta e camisa branca, o bigodudo Mulato, à esquerda, conforme reza a tradição – o primeiro nome da dupla fica sempre à esquerda – empunhava uma viola caipira e usava chapéu de boiadeiro. À direita, Carvalho, o ‘moderno’, vestia calça jeans e camiseta pretas e empunhava um violão de seis cordas. Nada mais, apenas dois instrumentos e duas vozes.

A platéia, ao contrário do que esperava, não era formada apenas por velhinhos, minoria diante dos jovens e quarentões casais munidos de celulares e máquinas fotográficas digitais.

O público parecia perplexo, hipnotizado diante de modas como a conhecida, “Chico Mineiro”, nome da canção mais famosa de Tonico e Tinoco. Quer dizer, famosa ao menos para mim que fui criado ao som de emissoras de rádio AM e locutores com Zé Bétio, do bordão “joga água no gordo”, e de vinhetas com sons de galinhas, vacas e outros animais.

Entre as cerca de 200 pessoas, uma chamou minha atenção. De segunda a sexta, Nélson Filho, de 46 anos, é um engravatado advogado da Companhia Energética do Estado de São Paulo (Cesp). Aos finais de semana, um caipira que nesse domingo vestia chapéu preto de caubói combinando com os cintos e as botas e camisa branca de mangas cumpridas da mesma cor da calça. Visual corajoso para o sol intenso e o céu azul paulistano daquela tarde.
Natural de Paraguaçu, cidade ao sul do estado de Minas Gerais, contou que já teve momentos de discoteca e funk (o de James Brown, não o carioca), mas “o contato com a música sertaneja remeteu-me à tradição, à raiz”, falou.

“Houve um momento, há sete anos, que fui buscar mais verdade. São Paulo estava meio cruel. Durante cinco anos morei num sítio em Embu Guaçú e conheci pessoas humildes, que montavam muito bem, tem bastante coragem e me trataram muito bem, mesmo antes de saber da minha profissão”, disse.

“Eram amansadores de cavalo, donos de loja muito humildes”, complementou, enquanto eu reparava em dois anéis de ouro distribuídos nos dedos anular e mindinho.

Nascido e criado no bairro do Limão, zona oeste de São Paulo, onde mora até hoje, conta que a influência musical veio do pai, também mineiro, que dançava catira e era Bastião na Folia de Reis.

Casado, ele tem cinco filhos - “como bom caipira e mineiro” – emenda rápido quando me surpreendo com a quantidade de rebentos. A preocupação, agora, é passar a ingenuidade, a beleza e a simplicidade para os herdeiros. “Eles não tem costume de sentar, ler, ir atrás da cultura. Nem é preciso ir tão longe, ele está por perto”, aponta em lamento tipicamente sertanejo.

Enquanto terminávamos de conversar, João Mulato e João Carvalho também encerravam o show, sob uma forte salva de palmas, que repetiu-se também com Jacó e Jacozito, Cacique e Pajé e Pena Branca, outros caipiras que acompanhei. Mulato agradeceu. “Parabéns à Virada Cultural por nos dar oportunidade de cantar para a gente sofrida e trabalhadora de São Paulo que merece esse lazer”.

Antes de deixar o lugar, resolvi tentar passar pela tenda que funcionava como camarim e abrigava Tinoco, responsável por apresentar algumas duplas. Emocionado, pedi um autógrafo em nome do meu pai e me empolguei ao contar a historia do meu velho, dos tempos em que ele trabalhava na roça, de como é fã de música caipira de raiz. Percebi que Tinoco exibia um sorriso meio amarelado, parecia não entender o que eu dizia. Foi então que Nadir, escudeira e esposa do ‘homem’ há 50 anos, me alertou-me de que um dos preferidos de meu pai não ouvia bem do lado esquerdo. Sem problema, mudei de ouvido e repeti tudo, do lado direito do sofá preto onde ele estava sentado.

A tarde do último domingo deixou-me uma certeza: ainda há esperança para a cidade dos caipiras, tanto aqueles em cima do palco quanto para os milhares que acordariam cedo na manhã do dia seguinte.

Parti com o coração feliz.