A fotógrafa paulistana Renata Castello Branco, 53, filha de um piauiense com uma gaúcha, caminhou durante oito meses pelas ruas da maior comunidade de São Paulo. A câmera digital Cannon foi seu passaporte para ingressar na euforia e na melancolia dos anônimos que compõem as 140 páginas do livro “Heliópolis”.
Por sugestão do Secretário de Educação da Cidade de São Paulo, ela resolveu deixar o estúdio na Vila Mariana, em dezembro de 2007, para registrar a vida presente nos cultos, nas conversas de calçada e nas roupas estendidas no varal.
Também visitou o Paquistão, um lugar onde nem mesmo a união dos moradores tem grande influência. Foi aí que precisou usar a lábia e o poder da imagem.
Com apoio da Fundação Padre Anchieta e da própria Secretária Municipal de Educação, a editora DBA lança na quarta-feira, dia 10 de dezembro, o resultado dessa imersão. A noite de autógrafos de “Heliópolis” acontece às 20h, no Centro Cultural São Paulo.
É uma oportunidade única: por problemas burocráticos, o material não poderá ser vendido. Quem comparecer levará para casa uma edição da obra que será distribuída para escolas da cidade.
Um dia antes do lançamento, Renata recebeu a reportagem de Anonimato S/A para falar sobre o início da carreira, os bastidores do projeto e a interferência da imagem na vida do cidadão comum.
Como surgiu sua paixão pela fotografia?
Renata Castello Branco – Quando eu tinha 17 anos, meu pai, Renato Castello Branco – um publicitário que começou a vida como escritor – se aposentou e resolveu fazer um trabalho com cunho jornalístico sobre Sete Cidades, um parque de formações rochosas no Piauí. Ele me levou junto, porque eu tinha interesse em arqueologia. Comprou uma (câmera) Nikkon e jogou na minha mão, pedindo para eu fotografar as formações e as inscrições rupestres. Eu adorei! Até fui fazer faculdade de História, mas no meio do caminho já sabia que não era isso que eu queria.
E o primeiro emprego?
Renata – Antes da faculdade eu fui trabalhar no estúdio do Chico Albuquerque, o maior de São Paulo na década de 1980. Ele foi o responsável por fazer a transição da ilustração para a imagem na publicidade. No acervo dele eu encontrei coisas incríveis, como propagandas que eram metade ilustração, metade fotografia. Desenhava-se uma escadinha na parede e uma luminária, bem rudimentares, e aí fotografavam uma mulher de forma que parecesse subir os degraus.
A estrutura era boa?
Renata – Cheguei em um período de muito investimento. Para fotografar um fogão, montava-se uma cozinha inteira dentro do estúdio. Era a época da grana, a mídia impressa tinha um valor enorme. Depois, saí para fazer faculdade, mas já começava a pegar uns trabalhinhos. Comecei a trabalhar com publicidade, iluminação e depois com retrato, que eu sempre gostei e aprendi a fazer com seu Chico. Passei a fazer muitos retratos empresariais, corporativos, de campanha política e acabei conhecendo os marqueteiros. Descobri aí o segmento que é meu foco: fotografia para campanha pública. Eu trabalho mostrando a gestão dos governos.
O livro Helíópolis tem um enfoque publicitário?
Renata – Não tem, mas surgiu a partir de um contrato que fechei com a secretaria de educação para falar sobre a gestão de uma forma geral. O secretário, que tem uma visão abrangente, encomendou um livro autoral sobre Heliópolis, porque a comunidade possui um projeto educativo muito interessante. Ele sugeriu que fosse feito dentro de um pacote de coisas que eu estava produzindo, mas com total liberdade.
O que você destaca no processo de elaboração do livro?
Renata – A parte testemunhal foi o que me encantou. Não deixa de ser uma delícia ver o livro pronto, mas o grande barato foi a jornada: entrar nas ruas, andar aleatoriamente por elas, pelos becos, buscando o que tem atrás de um varal, de uma porta entreaberta. Ouvir histórias, tomar cafezinho com as pessoas, ouvir desabafos. Uma relação que só foi possível porque eu tinha uma câmera pendurada no pescoço. A câmera fotográfica foi uma espécie de passaporte para interagir com as pessoas em uma comunidade que tem uma associação muito atuante (UNAS – União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco).
Qual era sua pretensão quando você começou a fotografar?
Renata – Nenhuma. Entrei lá rasa. Inclusive, no começo estava no caminho errado. O primeiro contato que eu tive foi através da UNAS e se eu não tinha nenhuma amarra nem com a prefeitura, nem com o secretário, me sentia atada à entidade. Porque eles estavam me mostrando a fachada institucional. Não que eles falaram o que eu tinha que fazer, mas, naturalmente, mostraram os projetos que desenvolviam. O primeiro passo foi perceber a necessidade de andar aleatoriamente, conversar, conhecer e entender aquele lugar, focando em coisas que iriam contar a história que eu gostaria.
Você encontrou alguma dificuldade para registrar as imagens?
Renata – Sempre havia alguém me acompanhando, você só circula acompanhada. Tem os lugares que a UNAS leva porque sabe que as pessoas vão gostar e onde o acesso já está negociado. Existe uma realidade paralela, não há um dia em que se ande por lá e não se veja o tráfico acontecendo ao lado. É uma coisa consentida. E eu queria ir nesse lugar aqui (aponta a imagem de um espaço chamado Paquistão, onde há a inscrição: “como pode um soldado pregar a paz, se foi treinado para a guerra”), só que a UNAS não tem acesso. Quando me dei conta, estava negociando com traficante para conseguir entrar. É o lugar mais barra pesada da comunidade, onde a influência da UNAS não existe. Recebi telefonemas em que ouvi coisas como “nós vamos te acompanhar, mas você vai fotografar as crianças do hip hop. Você não quer ir embora sem sua câmera, né?”.
Como os moradores a recebiam?
Renata – Com uma exceção, não houve resistência. Só encontrei problema quando comecei a fotografar umas casas que estavam sendo demolidas e tinha uma encrenca qualquer com a prefeitura, algo ligado à desapropriação, não sei bem. E aí ouvi umas coisas ruins, algo como “te meto uma bala na cabeça”. Mas, 90% do tempo fomos super bem recebidos. Tem também essa coisa da câmera digital que você fotografa e a pessoa compartilha na hora. Muitas vezes eu me colocava no lugar dos moradores e pensava que eu não gostaria de ser fotografada em uma casa de palafita, numa condição muito difícil, mas as pessoas eram receptivas.
Houve algum outro momento de tensão?
Renata – Em uma oportunidade, no Paquistão, estávamos numa ‘fusqueta’ lá da prefeitura, quase uma Brasília. O menino que guiava era um garoto de boné. Meu assistente também estava de boné. Mesma coisa um outro rapaz da rádio comunitária que nos acompanhava. E eu e minha coordenadora sentadas no banco de trás. Acho que os policiais pensaram que era um seqüestro e chegaram apontando armas para a cabeça deles. Foi complicado explicar que eu e ela não éramos vítimas.
O que a surpreendeu?
Renata – Uma das coisas que mais chamou minha atenção foi uma história que o Gil, fotógrafo da comunidade, contou. Ele nos explicou que uma região colada à essa do Paquistão sofria dos mesmos problemas e não era acessível. Até o tráfico entrar e moralizar. Não rola mais briga, não se vende droga para os menores de lá de dentro, não tem tiro à noite. Depois que o tráfico entrou e estabeleceu uma porção de regras, entra até caminhão das Casas Bahia, que não chegava. O tráfico faz o papel que o Estado deveria fazer.
Você tem filhos? Conversou com eles sobre a rotina das fotos para o livro?
Renata – Sim, tenho dois. Minha filha mora no Rio de Janeiro, então conversava mais com meu filho de 19 anos, que mora comigo. Eu contava meu dia-a-dia para ele, mas não é diferente do que fiz a vida inteira. Sempre procurei mostrar um lado que não é o que ele vive. Que a vida não é só Itaim e Nossa Senhora das Graças. Quando ainda era pequeno, vimos juntos o documentário do ônibus 174 e falarmos sobre absurdos como aqueles mauricinhos que botaram fogo no índio, em Brasília. A rotina não mudou por ter esse trabalho. Eu sempre me preocupei em conversar com eles sobre essas questões, não foi diferente nessa ocasião.
Como sua atividade pode interferir na vida das pessoas?
Renata – Eu acho que o fato da prefeitura escolher Heliópolis para fazer esse trabalho é um reconhecimento de que se trata de uma comunidade importante. A maneira como a comunidade está representada no livro é legal para a auto-estima, mesmo sendo impossível não mostrar as dificuldades. Mas, estão também representadas a força, o vigor, a criatividade, a alegria. E isso só há de melhorar a auto-estima. Não que seja ruim a auto-estima deles, acho que eles estão bem. Como trabalho com governos de Estado, prefeituras do Brasil, já estive em outras comunidades. Há três anos faço a Baixada Fluminense, a região da Guarapiranga, em São Paulo, então, tenho parâmetros para comparar e dizer que Heliópolis é a mais organizada.
Você manteve laços de amizade com as pessoas?
Renata – Eu não vi mais as pessoas com quem convivi, verei novamente amanhã (dia 10 de dezembro, data de lançamento do livro). O Régis, da Rádio Heliópolis, estará lá e virá um ônibus da comunidade. Lembro de algumas pessoas com muita admiração, mas estabelecer laços de amizade é difícil. Eu estou aqui e eles lá. Mas, com certeza, se precisarem de alguma coisa sabem que podem contar comigo. Isso eu acho que a gente pode chamar de laço de amizade.
Qual a visão que a obra apresenta sobre Heliópolis?
Renata – A síntese para mim é que a comunidade, pela condição de vida das pessoas, tem um tanto de dor, mas muito de alegria e de criatividade. Essa alegria passa de dentro das casas para as ruas, coloridas, grafitadas. Você anda por lá e sempre há alguém ouvindo música alto, as pessoas conversam muito, brincam. É uma comunidade que tem a polaridade muito forte. A dor e a alegria são sentimentos que convivem paralelamente o tempo todo. Essa foi a realidade que eu vi.
Serviço
Heliópolis”
Editora: DBA (Dórea Books and Art)
Fotos: Renata Castello Branco
Projeto gráfico: Sylvain Barré
140 páginas
Lançamento: 10 de dezembro, quarta-feira, a partir das 20h, no Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000, Paraíso/SP).