sábado, 1 de setembro de 2007

Romão Gomes
Luiz Carvalho

A tranqüila Avenida Tenente Júlio Prado Neves nasce na Nova Cantareira, zona norte de São Paulo. A patente da via já entrega o que está por vir. Entre o canil da polícia e a associação dos oficiais da corporação fica o Presídio Militar Romão Gomes. À primeira vista, não fosse o respeito à hierarquia, expresso nas continências e na posição de sentido dos presos, que só se desfaz após o comando do capitão Walter Luco Júnior, poderia confundir o lugar com uma colônia de férias.

Logo após a portaria, dentro da qual os soldados sintonizam a Kiss FM, há uma praça que recebeu o nome de dignidade humana. Nenhuma porta se abre sem que a anterior esteja fechada. No armário de número 13 deixo meu celular, levo a chave e caminho rumo ao pátio onde os internos, perfilados e uniformizados, aguardam autorização para seguirem os respectivos caminhos. Alguns cumprem regime fechado e voltam para a cela ou seguem para o trabalho no próprio complexo. Outros já ingressaram no semi-aberto e partem para um emprego fora dali.

Não sou o único visitante. Um ônibus repleto de alunos do curso de formação de soldados também estaciona logo após parar meu carro. A visita ao Romão faz parte da grade curricular. Trata-se de uma forma de mostrar o que acontece com quem recebe treinamento para servir à segurança pública e comete desvios em suas funções. Porém, “punição com respeito, independente da pena”, conforme observa o Major Antonio Spinieli, comandante interino do presídio e responsável por liberar minha entrada na casa.

Sob o toque da batida militar as atividades começam, por volta das nove, inclusive para os membros da banda de 12 internos.

Ala VIP
Antes que eu comece a enfileirar perguntas, Spinieli me leva para tomar café da manhã com o comando. A mesa inclui frutas e pães franceses feitos por presos como José (*), 44. Ele cumpre pena de quatro anos por homicídio. Está no Romão Gomes desde 2005, e depois de um curso com Rogério Shimura, chefe de cozinha que costuma freqüentar programas de televisão, aprendeu a arte da confeitaria. Por dia, fabrica 800 pães, também distribuídos aos funcionários do canil, do COE (Comando de Operações Especiais) e aos bombeiros.

Após a parada, passo pelo corredor da “Ala VIP”. À direita ficam as salas do major e do diretor do presídio. À esquerda a do capitão, toda a parte administrativa e o refeitório da cúpula. Nas paredes, frases para elevar a auto-estima, fotografias e o quadro de policiais do mês. Nessa manhã de quinta-feira, restou a Luco, homem esguio, de calvície acentuada, me apresentar as dependências.

De fala calma e articulada, o capitão saca um dos inúmeros cigarros que fuma durante a entrevista. Na estante ao lado da mesa onde mantém um computador com tela de cristal líquido ficam brinquedos como um navio pirata, um mago, uma guilhotina com um dos bonecos decapitados e uma vara de pescar que usa nos finais de semana com os filhos. “No começo é muito difícil trabalhar aqui porque sempre encontramos companheiros com quem estivemos”, fala.

Sete reais o quilo
A laborterapia ou terapia ocupacional, sob o comando do capitão Edson Gonçalves, é o segundo passo do programa de gerenciamento do preso. Caso apresente bom comportamento e já tenha cumprido ao menos quatro meses do período de reclusão, o detento passa para o segundo estágio. Entenda bom comportamento como apego à alguma religião, à família e o civismo. “Se recebe visita tem algo a perder e a religiosidade pode mudar o coração dele”, acredita Gonçalves. A cada dia o culto de uma crença diferente acontece. De protestantes a reikianos, todos possuem um espaço para reuniões. Para os católicos e evangélicos, uma igreja espaçosa, decorada com papéis tingidos por anilina amarela, pendurados na parede. Aos adeptos da umbanda, que realizam o ritual às terças-feiras, um terreno nos fundos, onde o atabaque, o fumo e os cantos são liberados. Porém, se a entidade quiser cachaça vai ter que procurar em outro terreiro.

Na segunda fase do processo o interno deixa a cela e segue para alojamentos. O número de visitas aumenta para quatro, a ala íntima para uma hora e além dos familiares, já pode receber amigos. A principal mudança, porém, é a possibilidade de trabalhar internamente. Cada três dias de labuta abatem um na pena. As opções vão desde a fabricação de casinhas de cachorro, em madeira ou plástico, até produção de serviços voltados à comunidade, como lava-rápido e tapeçaria. Existem ainda aqueles selecionados para lidar com a terra e com animais. Neste último grupo está João (*), 55, 25 anos de PM. Ele cuida do “berçário”. Planta em espécies de bandejas os produtos de uma horta, que fica na parte de trás do Romão. Enquanto enxuga o suor da testa, conta que se aposentou há sete anos, em Araçatuba, cidade a 524 km de São Paulo. A conversa termina quando lhe pergunto o crime que cometeu. “Ih, melhor nem falar”. Ele cumpre pena por estupro.

Neste lugar, homicidas, estupradores, latrocidas convivem sem distinção. A definição das celas ocorre de acordo com o perfil psicológico e não com o crime. Sempre identificados com um crachá, nenhum dos presos pode ser chamado por apelido ou pelo número. Normas da única detenção no mundo que ostenta o ISO 9001, um certificado de gestão da qualidade obtido em 2003. Basicamente, isso significa que da recepção à confecção do alvará de soltura, todo o processo dentro do sistema é descrito e planejado.

Tal qual João, Jerônimo (*), 50, casado, pai de quatro filhas, condenado a nove anos por homicídio passa oito horas num lugar que lembra o ambiente de uma fazenda. Do próprio humor do PM ao rancho onde cozinha feijão num velho fogão, tudo tem um ar caipira. A missão de Jerônimo é cuidar dos porcos e das aves. De quebra, toma conta também de Macalé, um labrador preto “nascido e criado em regime-fechado”, como diz. O cão se assusta com nossa presença, late quando entramos nos chiqueiros e o preso logo comenta, “ele pensa que vocês são da corregedoria”. O pai de Macalé, Pedro Luís, também mora no presídio, mas vive no “semi-aberto”. Você sabia que a gestação de uma porca dura quatro meses? Você sabia que Cachaça, feliz pai de 13 leitões, também pode cuidar da segurança, tão bem ou até melhor que um cão treinado? Pois é, aprendi naquele dia. A suinocultura é parte da renda do lugar. O quilo da lingüiça custa R$ 7, mesmo preço do quilo do lombo e do pernil.

No terceiro estágio do regime fechado o tempo de ala íntima passa para duas horas e o número de visitantes permanece o mesmo. Com exceção das crianças até 14 anos, todos passam por revistas íntimas. Os cabelos precisam ficar soltos e as mulheres devem se abaixar, de pernas abertas, nuas, por duas vezes para mostrar que não carregam nada dentro da vagina. As fraldas dos bebês são trocadas, diante de alguém do complexo penitenciário que acompanha o procedimento. Enlatados, vidros e caixas não entram. Cigarro pode, mas nunca em pacote, para não ser usado como moeda de troca.

Sem mofo
O primeiro passo e, imagino, o mais difícil para o policial militar condenado deve ser entrar na cela e deixar de ser seta para se transformar em alvo. Não há superlotação e nem sujeira nos espaços onde, inicialmente, os internos passam 22 horas. Não há cheiro de mofo, conforme observa o capitão. Mas há medo nos olhos dos novatos. Aqui acaba o clima de clube de campo. Os espaços de seis por seis metros abrigam, em média, 12 pessoas divididas em treliches. As camas levam os nomes dos internos, assim como os armários que não tem lugar para trancas e normalmente servem de suporte para aparelhos de televisão. O banheiro, mais ou menos do tamanho do quarto do meu apartamento, também está limpo. Nessa ala fica ainda uma espécie de solitária, aí sim, um pouco menor, do tamanho da cozinha lá de casa, sem espaço para TV, somente com beliche, privada e pia. Como em presídios “comuns”, no setor há uma pequena quadra, sobre a qual passa o varal onde as roupas ficam penduradas. Dois carcereiros, em turnos de 12 por 36 horas garantem a segurança. A função fica sempre a cargo de cabos, PMs em início de carreira como Luiz Antônio Pereira, natural de Guarantiguetá. Dois anos de polícia, um de carceragem.

O trabalho de Pereira é facilitado pela característica do presídio. Não vale a pena fugir, principalmente porque uma fuga significa a transferência para uma penitenciária comum. Trocariam a tranqüilidade pela tensão de viverem como cordeiros no meio de uma alcatéia. Por isso não existem muros, somente frágeis cercas e câmeras espalhadas por todos os lados.
Foi a necessidade de separar os militares dos presos “civis” que deu origem ao Presídio Militar Romão Gomes, em 1927. Contudo, apenas a partir de 1949 ele passou a funcionar na Serra da Cantareira.

Joana faz de conta
No total, são 236 pessoas. A mais velha tem 73 anos. São 180 em regime fechado e 56 no semi-aberto. Sete são mulheres. Joana (*), 32, viúva, é uma delas. Aos 24 anos realizou um sonho de infância: se tornar policial, igual à irmã e à mãe, policiais civis. Aos 30, a trajetória foi interrompida graças a um crime passional. Já cumpriu dois anos e oito meses na ala feminina. Têm mais uma década pela frente.

Ela está dentro das estatísticas. Homicídio corresponde a 84 dos casos de condenação no Romão, seguido por roubo. Os presos que recebem a sentença de até dois anos podem voltar às atividades. Para os condenados a um período superior resta o caminho da exoneração.

A mulher do interior paulista, atualmente em regime semi-aberto, prefere imaginar que está aquartelada. Assim consegue aplacar a saudade dos três filhos que moram com a mãe, também no interior. Conversa com as crianças por carta e telefone, mas ver mesmo, devido à distância, somente a cada dois meses, nos períodos das saídas temporárias. “O que você vai fazer quando sair daqui?” “Quero conseguir uma bolsa para um curso de auxiliar de enfermagem e voltar ao mercado de trabalho”, planeja. Foi o que sobrou.

Osvaldo (*), 43, tem duas coisas em comum com Joana. Primeiro, realizou o sonho de criança e se tornou militar, da mesma forma que o tio, coronel do exército. Segundo, finge que está no quartel durante a semana e um domingo por mês, quando vê a mulher e os dois filhos, tenta acreditar que está em casa. Tudo para preencher o vazio. A parte mais difícil foi ficar distante da esposa no período da gestação do caçula, depois que ela engravidou, entre um e outro encontro durante as visitas íntimas.

As semelhanças param por aí. Condenado a 26 anos e 8 meses por latrocínio, ao contrário da companheira de profissão, ingressará com pedido de reintegração na Justiça Militar. Se não for possível, quer ganhar a vida como desenhista profissional, função que desempenhava antes de começar a servir o Estado, 13 anos atrás.

Abaré está com gota
No último ato, o diretor do presídio, Tenente Coronel Abaré Vaz Lima, diz que consegue tratar colegas, com os quais conviveu um dia, como qualquer interno. “Quando ele entra aqui se torna um preso comum. Inclusive, temos três homens que trabalharam comigo e com os quais não mantenho conversa social”, decreta.

Eis um homem que sabe separar os lados pessoal e profissional, irrepreensível, com um ar austero, atrás do bigode negro. Ao contrário dos profissionais da área administrativa, como Luco, que vestem camiseta branca e calça de agasalho azul, o tenente está fardado. Por fim, se desculpa. “Não pude ser um bom anfitrião. Esta perna...”, e aponta para o joelho esquerdo. Ele manca. Acha que é gota. “Talvez, culpa dos cigarros, da cafeína...” Cigarro e café fazem mesmo mal à saúde. ■

(*) Para preservar a identidade dos internos, os nomes com asterisco são fictícios.