Segundo a Associação Comercial de São Paulo, o bairro do Brás, de 190 anos de existência, possui 55 ruas, seis mil estabelecimentos e quatro mil fábricas, além do Fusca branco de Rosana Rodrigues, 44 anos.
Na altura do número 1000 da Avenida Rangel Pestana, bem pertinho da Estação Brás de Metrô, ela passa boa parte das tardes deitada, “ouvindo black music”, da rádio Metropolitana, e olhando o movimento das pessoas.
Mãe de três filhas e avó de duas netas, Rosana nasceu em Assai, cidade ao norte do Paraná, a quase 400 quilômetros da capital do Estado. Porém, nem teve tempo para experimentar a culinária com influência japonesa do município, já que se mudou no primeiro ano de vida para a cidade paulista de Guarulhos, onde foi registrada, e depois para Jacareí.
Aos 17, visitou São Paulo pela primeira vez e, entre idas e vindas, está na capital desde 2004, onde mora em um Fusca sem rodas e sem placa ao lado do marido, Emerson Santos, a quem conheceu numa fila para pegar comida, no Pátio do Colégio, na região central de São Paulo.
Há quatro meses estão juntos e dormem todas as noites no carro, outrora abandonado, atrás de um caminhão com placa BKO 2975.
O casal vai para a cama cedo, às nove, 10 horas da noite, e acorda às sete da manhã. Santos costuma tirar entre R$ 20 e R$ 30, diariamente, com a venda do papelão que pega na rua. Algumas vezes Rosana o acompanha no trabalho.
Uma das três filhas, a de 23 anos, já casou-se e mora em Jacareí, assim como as outras duas meninas (de 19 e 12 anos), que vivem com a avó delas. Apenas a de 12 sabe da vida da mãe e, mesmo assim, quando Rosana contou, achou que era “brincadeirinha”. A família de Emerson Santos, residente no Arujá, também não sabe que ele vive e sobrevive das ruas.
A “casa” praticamente resume-se a uma cama feita com uma porta sobre o assoalho, disposta no lugar onde deveriam estar os bancos da frente e os de trás do Fusca. Em cima da porta, além do colchão, dois travesseiros e um cobertor estão, cuidadosamente, organizados. Na parte onde ficariam os pés do carona, estão produtos de limpeza e cremes faciais que Rosana comprou “de umas pessoas que vendem essas coisas bem baratinho.” Ao lado dos frascos, repousa um par de sandálias brancas número 35, e o porta-malas faz as vezes de armário para guardar os copos, talheres e outros objetivos doados que eles não tem onde colocar.Sobre o painel de um dos veículos mais amados do Brasil, há um relógio grande, vermelho, desses que as pessoas costumam pendurar na parede da cozinha.Rosana, cabelos loiros, sorriso tímido, reclama do ambiente “super apertado” e, principalmente, da falta de uma televisão. O capacho, ao lado da vassoura que fica encostada na parte traseira do automóvel, é um pedaço de papelão, onde o casal limpa os pés antes de deitar para dormir, protegidos por uma lona vermelha sobre outra azul, amarradas às partes traseiras e dianteiras, que aquecem e garantem intimidade.
“Ninguém nos incomoda e nunca pegaram nada nosso. É só não deixar as coisas para fora porque aí outros catadores podem levar.” É a lei da concorrência na terra da concorrência; São Paulo para todas as camadas sociais.
Rosana Rodrigues e Emerson dos Santos ainda conseguem espaço para duas caixas vazias de detergente, com roupas que lavam em albergues, locais onde também alimentam-se, mas onde não pretendem viver. “Não gostamos porque não podemos dormir juntos e também tem muita disciplina. Tudo tem horário e é muito difícil arrumar vaga. Você consegue um lugar para domir à meia-noite e precisa acordar às cinco da manhã”, comenta.
Vestida com uma regata preta, chinelos laranja e saia longa, colorida, ela joga uma camisa sobre as pernas para limitar minha visão sobre seu corpo e mantém no ouvido os pares de fone conectados ao rádio preto, agora, desligado. Assim permanece, mesmo quando pergunto sobre seus sonhos. “Não tenho muitos sonhos. Apenas não quero ficar morando num carro velho a vida toda. Mês que vem quero alugar um quartinho.”
*Reportagem orginalmente publicada neste blog no dia 13 de junho de 2008