domingo, 5 de agosto de 2007

Orações e ações
Luiz Carvalho

Durante alguns minutos, parei na altura do número 900 da Rua Dr. Almeida de Lima, na Mooca, para observar uma fronteira imaginária que dividia diferentes desejos e pesadelos. Na calçada do lado ímpar, nos bares próximos à Universidade Anhembi-Morumbi, adolescentes com os nomes dos cursos pintados na testa lembravam que as aulas recomeçaram. Na calçada do lado par, uma fila de adultos suados, principalmente idosos, lembrava que em minutos o Restaurante Bom Prato abriria as portas para quem quisesse comer em troca de R$ 1 ou 25 latinhas.

O programa do governo estadual que funciona num espaço cedido pelo complexo chamado Arsenal Esperança é apenas parte dos serviços da instituição. Por trás do imenso muro bege e dos portões pretos de ferro existem dormitórios, biblioteca, circo, lavanderia, escritórios, uma pequena igreja, um cheep dog chamado Tobi, salas de aula, além do belíssimo jardim e da fonte junto a duas paredes nas quais alguém pintou: “a bondade desarma”.

Lorenzo Nacheli e eu nos sentamos num banco de madeira, sob o sol da manhã. Vice-coordenador da unidade brasileira, ele conta
que tudo começou com um senhor chamado Ernesto Olivero, fundador do Servizio Missionário
Giovani (Semig) ou Serviço Missionário de Jovens, no ano de 1964, em Turim, na Itália.

O nome, Arsenal da Paz, foi inspirado na sede da entidade, uma fábrica abandonada que um dia serviu para produzir armas utilizadas por soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial.

A barba cumprida envelhece o homem de 35 anos com quem converso. Apesar de viver há oito no país, o sotaque deixa claro que ele não é brasileiro. Os acolhidos se transformam em “acoidos” e o ‘r’, de rua, perde a força. Os chinelos com meias e o agasalho de moletom passam a impressão de pouca preocupação com a imagem, nenhuma vaidade. A resposta vem da sua opção. Trata-se de um consagrado leigo, fatia do Semig que não se casa e decide doar a vida à caridade. “Na Itália e nos EUA, muita gente vive na rua por opção, para fugir da sociedade. No Brasil, a maior parte é obrigada a viver essa opção por problemas com drogas, álcool, abuso sexual e falta de emprego”, acredita.

Lorenzo faz questão de frisar que a filosofia do espaço é adotar princípio diferente de um albergue, onde a ajuda se restringe a cama e comida. “Nosso trabalho é acolher pessoas, estruturá-las e depois ajudá-las a encontrar um caminho. Formamos um berço bonito, mas que leva os homens a desejarem sair daqui”, diz. Segundo ele, após passarem por uma triagem, os candidatos à acolhida recebem uma espécie de roteiro de reinserção. Um grupo de assistentes sociais trata do acompanhamento dessas pessoas nas áreas de educação, saúde e documentação.

Ele diferencia os acolhidos em dois grupos: moradores de rua e moradores em situação de rua. “Qual é a diferença?”“No primeiro grupo estão pessoas que já não se enquadram mais em regras, horários e por isso não querem viver em um lugar como o nosso. No segundo, estão aqueles para quem as calçadas são um lar provisório”.

Para Marcos Silva, 43, o problema não é a dificuldade em seguir normas. Ele deixou a instituição após três anos de convivência, um curso de cabeleleiro e um de escultura pela Anhembi-Morumbi. Em 2004, quando saiu, alugou um quarto com um amigo. Mas, a falta de grana o obrigou a viver nos espaços por onde nossos passos apertados passam. “Já na época em que vivia aqui, trabalhava com reciclagem, catando papelão e garrafas pet. Após um tempo, essa se tornou minha única forma de sobrevivência e como não podemos deixar nossos carrinhos na Arsenal, precisei fazer uma opção”. Por volta das três da tarde ele é um dos últimos na fila para o almoço. Com cortes de cabelos particulares fatura até R$ 40 por mês e consegue dinheiro para comer. Seu sonho é montar uma ONG que produza conhecimento para lutar contra a poluição dos mares.De fala fácil, conta que a mãe, alcoólatra, não deixou o pai registrar nenhum dos filhos porque dizia que ele poderia lhe tirar as crianças. Aos 14 anos, após ser mandado embora inúmeras vezes, Marcos deixou a casa onde vivia com mais seis irmãos para ficar sob proteção de um padre, que o acompanhou até completar 18 anos. Aquele cara magro, baixo, de cabelos raspados, afirma ter enterrado 25 fetos no quintal de casa, fruto de abortos maternos.

Pausa na entrevista. Uma lágrima escorre no rosto do homem com quem encerro o papo e de quem ouço um “boa sorte.”

A instituição chegou ao Brasil pelas mãos do governo Mário Covas (1995-2001), em 1996 e passou a ocupar um espaço que funcionava como casa de acolhida, abrigo para menores do SOS Criança e para mulheres com deficiências mentais. Por meio de Dom Paulo de Evaristo Arns, Covas procurou a Semig, que resolveu enviar três missionários para iniciarem o trabalho em terras brasileiras. Porém, o início da história do local remete ao final do século 19, quando o Visconde de Parnaíba construiu a Hospedaria dos Imigrantes para abrigar povos que chegavam ao país. Até 1950, mais de seis milhões de estrangeiros passaram pelo lugar onde o grupo italiano atua hoje.

A convite de Lorenzo, Antônio Paladino, presidente da Arsenal, se junta a nós. Alto, cabelos grisalhos, óculos grandes, se move de forma ágil, apesar de mancar da perna esquerda. Enquanto caminhamos, ele conta como chegou até ali. “Me converti à proposta porque achava que fazia muito pouco como cristão, além de rezar. Nenhuma oração é completa se não for precedida de uma ação”, acredita o pai de três filhos e avô de quatro netos.

No imenso refeitório, uma grande quantidade de velhos come ao lado de uma legião de motoboys da região e jovens que deixam ao lado do prato sacos de balsa para venderem nos semáforos. Juan, nove anos, segundo filho de uma família de sete irmãos, almoça ao lado de Anderson, amigo de 14 anos. Ambos moram na Mooca e, desconfiados, não querem papo, nem mesmo quando tento puxar assunto sobre futebol. Nenhum adulto os acompanha.

Quando Paladino, Lorenzo e eu cruzamos a quadra para ir à lavanderia, um acolhido questiona o presidente sobre um torneio de xadrez que acontecerá em breve.“Dizem que xadrez é bom para formar estrategistas”, comento.“Isso eles já são. Precisam ser para descobrir onde comer, para onde ir”, responde o senhor.

Na lavanderia, Flávio dos Santos é um dos 80 funcionários da casa. Faz parte de um grupo de pessoas que se renova mensalmente. São internos que recebem salário para auxiliar na manutenção, lavagem de roupa, limpeza de banheiros. Como mais da metade dos companheiros da casa, ele saiu de um outro estado – Paraná – para tentar a sorte em São Paulo. Trabalhou na construção civil, rodou o interior, veio para a capital paulista e há um mês vive na instituição, após perder o emprego. Caminha com uma identificação no peito que mostra o número do beliche.

Nossa última parada é uma pequena capela, no fundo do terreno. Paladino se ajoelha e faz o sinal da cruz. Por respeito, abaixo levemente o tronco e cruzo a mão direita no peito, conforme me ensinaram no catecismo.“Está vendo a porta do sacrário?”, pergunta. “Antes era utilizada num forno em que forjavam armas e agora guarda o corpo de Cristo”. Como a Igreja Católica, a entidade que preside é uma sacola de metáforas.

São quatro e meia e eu me preparo para deixar o lugar. Diante do Arsenal, uma nova fila se forma, agora, com pessoas que chegaram para passar a noite.

Expedito Santos tem 45 anos e é o primeiro. Carrega um sorriso no rosto e uma sacola de plástico com objetos pessoais na mão direita. Sua história é como a de muitos outros. Deixou Piauí, o estado natal, para arrumar trabalho e foi parar na cidade paulista de Embu das Artes, onde trabalhou como carregador. Foi ainda estivador no Porto de Santos, antes de chegar à cidade de São Paulo. Mais um desempregado, mais um a morar na rua. No dia 3 de setembro completou quatro meses de instituição. Os sonhos do homem divorciado que deixou uma filha no norte são arrumar um trabalho fixo, ao invés dos bicos de carga e descarga, e alugar um quartinho.

“O problema, sabe, é a idade e a falta da escola”, aponta o piauiense. Quais serão os sonhos dos estudantes do bar em frente