sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Papa x Nascimento
Luiz Carvalho

Já são mais de dez da noite, quando Hugo Papa e Fábio Nascimento sobem ao ringue, montado sob o viaduto Alcântara Machado. O primeiro veste camiseta regata cinza, calção preto e sapatilha azul. O segundo, uma camiseta vermelha com o número 93, calção preto e sapatilha vermelha.

A noite é de final. Papa e Nascimento se enfrentam por um troféu que simboliza o título de campeão amador dos super-pesados. Na prática, a liga não existe, ao menos não ali, mas isso não faz a menor diferença, tanto para os boxeadores quanto para o público que se acomoda nas cadeiras de plástico. Como em disputas profissionais existem juízes, paramédicos e uma ambulância.

Pela primeira vez eu assisto, ao vivo, a uma luta de boxe. Como ex-balconista de boteco já vi pessoas brigarem armadas com cacos de garrafa e tacos de sinuca, mas observar dois caras trocarem porrada, assim, tão próximos, numa mistura de fúria e prazer, parece muito mais violento e excitante. O som de cada soco na face oposta se valoriza graças às luvas e às máscaras de proteção.

Além das lâmpadas instaladas sobre o tablado, uma espécie de semáforo, pendurado no teto, com duas luzes amarelas acesas, dá um ar glamuroso ao espetáculo.

Entre um round e outro, Luiz Gozanga, o DJ, comanda o som com músicas que ele não sabe de quem são.“O que o senhor toca aí?”“Ah, sei lá, coisa agitada” – ele responde.No porta CDs do senhor de bigode e cabelos brancos reconheço clássicos da black music da década de 1970, como Marvin Gaye e James Brown. Em cima do aparelho de som, claro, a trilha que não poderia faltar: “Rocky, o lutador”.

A arena é um dos núcleos do programa de Garrido. Você já deve ter ouvido falar nesse cara. Dezenas de programas de TV já o entrevistaram, graças à academia que ele mantém no Viaduto do Café, na Bela Vista.
Agora ela já possuí equipamentos profissionais, mas sua fama cresceu porque usava a criatividade para produzir materiais de treinamento. Para levantar peso, os alunos utilizavam barras de ferro com latas cheias de cimento, nas pontas. Pneus pendurados em cordas faziam as vezes daqueles sacos que servem para aprimorar os socos. Como a ponte onde treinava os pupilos passa por reformas, a prefeitura cedeu um outro espaço para que dê continuidade ao trabalho.

Apanhar e bater
De volta ao confronto, Nascimento, 110 quilos, recebe instruções da equipe formada por três pessoas. Uma delas funciona como uma espécie de assistente. Ajuda a colocar a luva, leva água, faz curativos e coloca o protetor bucal. As outras duas, além de cuidarem das instruções técnicas, dividem-se entre anotar os pontos fracos do adversário e abanar o próprio lutador. Na outra ponta, Papa, na altura de seus 124 quilos, recebe tratamento idêntico.

São três rounds e logo após o gongo soar já é possível perceber que a vida do rapaz de camiseta cinza não será fácil. Com apoio da platéia, Hugo Papa dispara diretos e cruzados desnorteados. Ambos estão nitidamente acima do peso e praticam o jogo de apanhar e bater, sem estratégia nenhuma. Mas o homem da camiseta vermelha parece ter maior vigor físico e objetividade.A superioridade de Papa continua no 2.º round. A capacidade de Fábio Nascimento em se manter em pé é impressionante. No terceiro assalto, a grande preocupação dele parece ser evitar o nocaute. Consegue, mesmo após ser levado às cordas por diversas vezes.

Para todos os expectadores e para mim parece óbvio: Papa venceu.

Porém, um “pequeno” imprevisto. O árbitro, Walter Andrade, tira as luvas do suposto vencedor e o desclassifica por usar bandagem cruzada entre os dedos.

Quem anuncia o resultado no microfone é Garrido, elegantemente vestido com terno e calça social cinza. Cabelo black power, cavanhaque, sob protestos afirma, “regras são regras e devem ser respeitadas.”
Os integrantes da equipe do perdedor reclamam, tentam dialogar, sorriem ironicamente, mas não há mais o que fazer.

Pergunto a Andrade, membro da confederação brasileira de arbitragem da categoria o motivo da desclassificação. Ele explica que a suposta artimanha não é permitida entre amadores porque aumenta a potência dos golpes.Insatisfeito, Papa se prepara para ir embora na Van que o trouxe de Mogi-Guaçú. Segue ao lado do treinador, Fernando Fumaça, lutador profissional da categoria Super-Pena, da mãe, dona Otília, do primo e da sobrinha. “O resultado foi injusto. Em todas as lutas eu amarrei a faixa da mesma forma e nunca disseram nada. Agora, só porque vencemos um atleta da casa eles agem dessa forma”, diz Fumaça. Explico: Fábio Nascimento treina todos os dias com o Garrido, ao contrário de Papa, que não faz parte da equipe do dono do núcleo.

Do outro lado, já na rua escura paralela ao local do combate, o vencedor é só alegria. Caminha ao lado dos amigos com o imenso troféu nas mãos, rumo à estação de trem onde embarca para Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo.
Aluno desde o início do ano da academia sob a ponte na Mooca, trabalhava como segurança de um bingo durante o dia e treinava, de segunda à sexta, no período da tarde. Sem emprego, ironicamente, por um lado tem mais tempo livre e por outro precisa economizar para conseguir juntar dinheiro e pagar a condução até o local do treino.

Ah, o amor. Depois de uma noite inteira de socos, é hora de nos tornarmos românticos.

Sem expectadores, cinegrafistas e o fotógrafo que ficou irritado ao sentenciar que sou antiético por tirar fotos e escrever matérias, ocupando, assim, seu lugar no mercado de trabalho, o dono da festa se senta ao lado da mulher, Cora Garrido. Negra, como ele, se mantém em silêncio atrás dos óculos, enquanto o marido sorri e dissimula quando trato de qualquer assunto sobre a vida particular de ambos. Se recusa a dizer onde a família mora e diz preferir falar do projeto, atrás da mesa de escritório equipada com um computador no qual estão armazenados os dados das pessoas ligadas ao programa que comanda. Ao nosso lado, sofás, um fogão e uma mesa de madeira são parte da decoração dos "ambientes" da "casa".

Garrido conheceu Cora debaixo de um viaduto. Na época trabalhava como segurança e tomava conta de algumas crianças que viviam na Praça Ramos. Morava nas calçadas da cidade.

“Numa noite chuvosa, ela – a esposa – apareceu e me viu todo sujo, com uma enxada na mão e chapéu de Sassá Mutema. Eu sempre pedia ajuda a Deus e um dia ele me atendeu. Temos os mesmos ideais”, lembra, antes de destacar a importância da mão solidária da parceira no início de uma academia sob a ponte.

Olho ao redor e vejo faixas com nomes de políticos.“Essas pessoas que tem os nomes estampados nas grades te apóiam?”“Tem gente que tira proveito onde não deve. Aquele vereador – aponta para uma das faixas – contribuiu financeiramente para a realização de um torneio, mas eu disse ao jornalista que pregou isso aqui que campanha política fora da época de eleição é crime. Se alguém quiser uma soma com o Garrido, tenho um preço, mas vamos discutir fora daqui”. Ninguém é inocente em São Paulo. Nem Garrido, nem eu.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

De volta à Rua Coimbra
Luiz Carvalho

Descobri a Rua Coimbra por acaso. Até me casar e morar no bairro Bresser, ao lado da estação de Metrô de mesmo nome, acreditava que aquele pedaço da zona leste era reduto de italianos. As raízes da minha esposa reafirmavam essa idéia. Filha de um napolitano com uma brasileira, neta de napolitano, minha então namorada morava no começo da Rua da Mooca –onde vivo hoje. Ela torcia para o Palmeiras, como heroicamente ainda faz, e mantinha a tradição de comer macarrão no almoço de todos os domingos.

Porém, numa noite nublada de sábado, quando procurava uma adega para comprar um garrafão de vinho, me perdi e fui surpreendido por homens e mulheres com feições indígenas num lugar onde os letreiros dos restaurantes são grafados em espanhol. Inicialmente, pensei, “caraca, andei tanto que saí em La Paz”, mas se tratava de um encontro da comunidade boliviana em São Paulo, que costuma ocupar as páginas de jornais apenas quando o assunto é trabalho escravo.

No último sábado, caminhei novamente entre os três quarteirões da mesma rua, dessa vez com um número bem menor de pessoas na feira que existe há um ano no coração da região do Bresser. Primeiro, porque cheguei três horas antes do pico da festa, que acontece por volta das sete da noite. Segundo, porque era mais um dia de comemoração no mês da independência da Bolívia, e muitos estavam no Memorial da América Latina.

Entre salões de cabeleleiros, vendedores de produtos típicos e computadores com acesso à Internet, improvisados nos fundos das lojas, os imigrantes tentam manter a memória viva.

Gente como Maria Montano fala pouco. Ela vive há três anos no Brasil, país para o qual mudou devido a falta de emprego e dificuldade de estudar na terra natal. Durante a semana trabalha numa confecção. Aos sábados, vende CDs de música folclórica, cumbia e salsa. O hitmaker, entre os discos de MP3 que organiza sobre uma tábua de madeira é Yuri Ortuño.

A poucos metros dela, Juan Carlos, Juan Carlos (não é erro de digitação, são dois Juan Carlos mesmo) e Jhonny jogam pebolim por R$ 0,15 a ficha. Cada uma dá direito a três bolas. Graças ao baixo custo, as mesas desse tipo de jogo se espalham pelas calçadas.

Resolvo parar em uma casa que vende material para confecção, especialmente linhas, distribuídas em carretéis no formato de cone. Lá, Joana Lopes me recebe. Desconfiada, ela tem mais perguntas a fazer do que eu. Tasco logo uma mentira e digo que a entrevista é parte de um trabalho para a universidade.
“Qual?” – ela pergunta.
Dessa vez sou quase honesto. “Universidade Santo Amaro”, onde um dia estudei.
“Ah, tá” – faz um ar de que não conhece. “Qual curso?”
“Jornalismo” – digo.
“Hummm” – murmura, sem grande simpatia.

Talvez fosse melhor dizer psicologia. Na minha área, especialmente nessa região, vale mais ser um amador do que um profissional em busca de outro furo de reportagem. Nós chegamos, denunciamos, os deixamos sem emprego e ameaçados de morte por colaborarem, involuntariamente, com uma matéria que alguém lerá e esquecerá assim que sair da frente do computador para ir ao banheiro.

Joana para por alguns segundos diante de um cartaz das Agulhas Orange, que ostenta a bandeira brasileira ao fundo. Diz que conheceu o Brasil por meio de estudantes universitários que fazem intercâmbio na Bolivia. Cala-se e, de repente, desaparece no fundo da loja. Reaparece com Luís Vasquez, Presidente da Associação de Moradores Bolivianos da Rua Coimbra (AMRC), com quem começo a conversar.

Tímido, ele sorri de canto de boca e quando tento fazer a primeira pergunta me interrompe e diz.
“Olha, me manda um e-mail que eu te respondo. A maior parte dos jornalistas só associa nossos irmãos à escravidão”, critica. Aceito seu pedido, mas, aos poucos recomeço o papo para quebrar o gelo.

Para ele, mesmo diante do trabalho degradante nas fábricas de roupas, é melhor imigrar do que ficar e enfrentar as desigualdades. A maioria do seu povo sai de zonas rurais como a parte de La Paz que faz divisa com o Peru. O presidente da AMRC me explica que a luta pela concorrência faz com que o valor dos salários diminua cada vez mais na região central de São Paulo. Cerca de somente 3% do valor final do produto chega até o empregado, que recebe por peça. Sem condições de pagar um lugar para morar e diante da necessidade de produzir cada vez mais, muitos vivem onde trabalham. Com o tempo, o salário se torna um prato de comida.

Os coreanos, que substituíram os judeus na região da 25 de março, agora são os chefes. Antes, faziam o que os bolivianos fazem. Num rompante de humor, Vasquez filosofa.
“Talvez um dia nós assumamos o posto dos coreanos e coloquemos os uruguaios no nosso lugar”.

Em alguns minutos recebo uma pequena aula de história. No trecho oriental do país de Luís Vasquez ficam as classes mais ricas e no Vale, de onde saiu o atual presidente, Evo Morales, os mais pobres. Na parte ocidental está a região do Altiplano. Assim como muitas vezes ouvimos por aqui, há uma onda separatista por lá, o desejo de implementar uma “higienização social”.

Migrantes e imigrantes são muito parecidos. No Brasil, basta substituir o Nordeste pelo Vale, o Oriente por São Paulo e o sotaque castelhano por expressões baianas, paraibanas, cearenses. O desejo de juntar dinheiro e voltar para a terra de origem é o mesmo. A ânsia por manter a cultura viva também.

Porém, há uma grande diferença quando se trata da capacidade de indignação.
“Aqui, o ônibus vai de R$ 2 para R$ 2,30 e ninguém faz nada. Na Bolívia, a passagem tem o mesmo preço há 10 anos e qualquer coisa é motivo para mobilização política”, observa.

Aos 21 anos, Cyndi Martinez Hurtado comanda uma das quatro agências que o pai, Hervin Gonzalo Hurtado mantém. A jovem, nascida em Belém do Pará, conta que Hurtado desembarcou por aqui há 33 anos. O avô de Cyndi tinha uma amante brasileira e resolveu raptar o filho e morar aqui. Porém, o romance acabou e o filho foi abandonado, aos sete anos. Hoje, além da loja na Rua Coimbra, a família possui uma unidade na Casa Verde Alta, outra no Pari e mais uma no Bom Retiro. Todos são bairros com um grande número de bolivianos, nacionalidade de todos os funcionários que auxiliam Cyndi, a filha mais velha de uma família de três irmãos. Sem nenhum traço dos ancestrais, a não ser a fluência na língua espanhola, ela oferece por R$ 0,70, o minuto, ligações para qualquer parte da Bolívia. Os clientes compram tíquetes e entram numa cabine transparente equipada com mesa, cadeira e velhos aparelhos telefônicos. Um computador controla o tempo.

Formada em administração, destaca que a discriminação é uma pedra no sapato de alguns povos que chegam ao Brasil, especialmente os sulamericanos.
“As crianças são as que mais sofrem. Como os pais passam a maior parte do tempo nas oficinas de costura, se dedicam pouco aos filhos. Muitos são alvos de brincadeiras cruéis porque freqüentam a escola com roupas rasgadas e sujas. No Orkut, já li pessoas escreverem que somos ‘japonegros’”, diz.

O próximo passo é cursar direito para poder ingressar na Polícia Federal. A idéia é ajudar os imigrantes com a regularização dos documentos, processo que, atualmente, demora até três anos para ser concluído.

Quando nos despedirmos, ela ainda me ensina um pouco sobre meu país.
“Você sabia que a Praia de Copacabana tem esse nome graças à Nossa Senhora de Copacabana, uma santa boliviana?”, pergunta. Eu não sabia.

Antes de entrar num dos restaurantes que vendem Chincarron de Chancho (receita que leva carne de porco), por R$ 10, tentei entrevistar um cabeleleiro, mas todos os salões estavam lotados. Perguntei a um dos funcionários se o dono poderia me atender e ele respondeu, “não, está peruqueando”.

No final da rua, Fernando Coronado entrega panfletos diante da Peluqueria Los Andes. Há cinco anos no Brasil, conta que é casado com uma conterrânea e tem dois filhos brasileiros. No lugar que ajuda a divulgar, mais de 80% da clientela possui as mesmas raízes de Coronado.

Um amplificador conectado ao computador aumenta o alcance da rádio Chacaitaya, que o rapaz sintoniza via internet. Talvez ele não saiba, mas o que faz explica o termo globalização muito melhor do que qualquer especialista dos cadernos de economia dos grandes jornais da cidade.