segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Meu peru nunca é preso, com habeas corpus sai ileso

Por Luís Fernando Carvalho *

Caros leitores, queridas leitoras, respeitável público: a primeira vez com peru é inesquecível e leva três dias. No primeiro dia, existe até peru mecânico – ao invés de touro mecânico – para testar o equilíbrio. O segundo dia é meio morno, como se estivesse ali, localizado bem no meio do evento fantástico, a fim de garantir fôlego suficiente para algo desconhecido, uma sensação que está por vir. Então, no terceiro dia, o auge, o êxtase, a explosão de felicidade e prazer, alegrias maravilhosas que tomam conta de todo o ser.

Calma, calma! Eu posso explicar! A Peruada é um evento tradicional da Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo São Francisco e carinhosamente chamada de SanFran. Ocorre anualmente, na terceira sexta-feira de outubro, sendo considerada uma manifestação político-etílico-circo-carnavalesca, cujas origens alguns dizem remontar a 1948, quando membros do Centro Acadêmico XI de Agosto furtaram nove perus de raça premiados na Exposição Nacional de Animais do Parque da Água Branca e com eles se banquetearam. Na verdade, há registros de memoráveis festas estudantis organizadas para a “libertação” dos calouros dos suplícios do trote: em 1932, um estudante fantasiou-se de Oswaldo Aranha, vestiu a camisa negra do fascismo e fez malabarismos com um chuchu, que simbolizava Getúlio Vargas.

No primeiro dia, ocorre o chamado Grito do Peru. O famoso Vitão, membro do Diretório Jurídico carinhosamente e informalmente incorporado como patrimônio histórico-cultural da SanFran, abre as festividades de uma maneira bastante excêntrica: segurando um peru – vivo – à frente de um grupo composto por duas mulatas que sambam primorosamente e uma banda de senhores tocando marchinhas de carnaval. Todo o grupo sai do Porão, adentra a Faculdade pelo corredor lateral, na rua Riachuelo, e literalmente dizima as aulas em todas as salas, começando pelas do térreo, onde boa parte dos calouros estudam. Cumprida a primeira parte da tradição, junta-se ao grupo a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco – BAISF – e a folia definitivamente toma conta das Arcadas, com o samba animando os estudantes até na sua empreitada sobre o peru mecânico. Mais tarde, precisamente às XI e 08 da noite, ocorre a cervejada pré-peruada, e a “lascívia acumulada” começa a ser liberada.

Desde seus primórdios, a festa não ocorreu apenas de 1974 a 1982, por conta da repressão e censura dos governos militares. Seu nome está ligado ao hábito caboclo de dar pinga aos perus, tonteando-os antes do sacrifício. Assim, considerando que os estudantes – calouros ou não – sorvem o ardente líquido com a mesma submissão e posterior volúpia que os animais em questão, percebe-se facilmente o caráter etílico do evento e a pertinência de sua graça. Aliás, existem antigos alunos que não mais freqüentam o maior evento franciscano justamente porque consideram que ele perdeu seu caráter político, focando somente no etílico. A crítica não é totalmente verdadeira, mas por pouco: os estudantes festejam a Peruada basicamente como uma “micareta open bar”, enchendo a cara de cerveja, vodca e jurupinga, além dos artefatos alcoólicos trazidos de casa, como bebidas cujo aroma não é lá muito agradável e cuja aparência faz lembrar os famosos vinhos “sangue de boi” interioranos.

A paquera também corre solta pela festa, digamos, no formato de pegação desenfreada. Seguindo fielmente os princípios dos Tribalistas, segundo os quais “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, a massa estudantil une seu estado “etilizado” aos feromônios, resultando numa operação de solta e agarra – diferentemente da operação Satiagraha, esta é efetiva – à luz do dia, nas ruas do centro paulistano.

Neste ano, entoando louca e roucamente os primeiros versos do hino do evento – Vai, vai, vai começar a brincadeira / Tem cerveja de graça a tarde inteira / Vem soltar a lascívia acumulada / Vai, vai, vai começar a Peruada – por quase todo o tempo, os jovens se mostraram animados desde a concentração, no número 138 do Largo do Paissandu. A brincadeira, então, seguiu pelas avenidas São João, Ipiranga e São Luís, atravessou os viadutos Nove de Julho e Jacareí – com uma parada em frente à Câmara Municipal para protestar –, passou pela Rua Maria Paula, subiu o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, seguiu pelo Largo São Francisco e pela rua Líbero Badaró, até finalmente contornar a praça Ramos de Azevedo e retornar ao local de origem, lá permanecendo até a noite.

Os protestos, que ocorreram especialmente em frente à Câmara Municipal, refletiram-se nas fantasias e alegorias vestidas e utilizadas pelos participantes. Havia dois rapazes cujos trajes aludiam aos dois militares gays do Exército. O casal buscava chamar a atenção para o preconceito: os chapéus usados por eles tinham detalhes em rosa, bastante chamativos. Havia, ainda, duas moças simbolizando Lehman Brothers, nitidamente satirizando a crise econômica iniciada nos Estados Unidos. Outras belas jovens, em referência à Lei Seca, vestiam-se de táxis, cujas placas traziam os dizeres “Em tempos de Lei Seca, pegue um táxi!”. Foram consagrados no concurso das melhores fantasias políticas e críticas o Vendedor de Habeas Corpus, a Pizzaria 3 Poderes – cuja fantasia relembrava os escândalos com cartões corporativos do governo federal –, os Bobos da Suprema Corte e o grupo do Tio Sam de Calças Curtas.

A festa nas ruas não ficou restrita a universitários. Aliás, longe disso: havia quase uma centena de policiais militares incumbidos de zelar pela segurança, técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego – afinal, centro de São Paulo é centro de São Paulo –, trabalhadores, transeuntes e até mendigos e catadores de latinhas, todos bastante animados, embora muitos sequer soubessem do que é que se tratava aquele “monte de gente pulando com música alta”, nas palavras de um senhor que recolhia latinhas de refrigerante e cerveja enquanto aproveitava todo o aparato musical para, também ele, dançar conforme o ritmo.

Já sem condições inclusive de falar, mas com enorme esforço para resgatar o mínimo de voz na garganta, aqueles que ainda se mantinham de pé cantaram, com sentimento ligeiramente melancólico, os quatro últimos versos do hino da peruada, de autoria de Eduardo Calvert: Vai, vai, vai terminar a brincadeira / Que a cerveja rolou a tarde inteira / Morre o sol, faz-se sombra nas Arcadas / Vai, vai, vai terminar a Peruada.

* Luís Fernando Carvalho, 23. Formado em Relações Internacionais pela Unesp (Franca - 2007), estuda na Faculdade de Direito da USP, trabalha e mora no centro de São Paulo. Viaja muito pelo estado e crê que sua vida seria bem mais próspera se ganhasse milhagens para suas incontáveis viagens de ônibus. Em 2008, participou pela primeira vez da Peruada.

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