sexta-feira, 27 de julho de 2007

Quinta trans no coração da Cidade
Luiz Carvalho

Faz frio. Muito frio. Quase neva na Boca do Lixo, onde São Paulo abriga parcela do público que não tolera: mendigos, prostitutas, homossexuais, travestis. Não sei o que veio primeiro, se o pseudônimo do centro velho da cidade ou os moradores, mas o hilário é observar que o gueto, conforme definiu uma travesti chamada Renata –que reencontrei nessa quinta– personifica o termo liberdade de expressão. O que é afronta? Um casal de mulheres com o rosto colado, mãos unidas, a observar o cardápio do bar Arco-Íris? Dois rapazes se beijando, encostados na porta de ferro de uma loja fechada? Nós não estamos preparados para a verdade.

Felizmente, seis e quarenta e cinco não são seis e quarenta e cinco para os paulistanos. Chego pontualmente vinte minutos atrasado no Tele-Pizza
Esfiharia, lanchonete de nome tão abrangente quanto o público que atende. Na primeira vez que estive alí para conhecer o Quintas-Trans, encontro quinzenal de transexuais, fiquei impressionado com a naturalidade que nos atenderam. Naquela ocasião, o tema era inclusão social e os participantes não tentavam disfarçar a identidade. Muito pelo contrário, pareciam se orgulhar do caminho que trilharam para chegar até aquela mesa.

Hoje, eu percebi o motivo do bom atendimento, ao observar, por meio de um espelho no outro lado do salão, um relógio pendurado na parede com as cores do arco-íris. Uma bandeirinha colorida sobre o computador no qual Cristina, uma das donas do lugar registra os pedidos serve para não deixar dúvidas de onde estamos. A outra proprietária é Patrícia, responsável por fazer o papel de garçonete. Elas compraram o ponto há três anos porque queriam uma casa para atender gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Conseguiram atingir o objetivo: o lugar é homogêneo e atrai desde professores filiados ao sindicato, que fica próximo, na Praça da República, até membros de Igrejas GLBTT da redondeza, além de famílias como a sua e a minha, com crianças e vovós. Cristina e Patrícia completam 12 anos juntas em outubro.

Somos em cinco nessa noite e Alessandra Saraiva, transexual feminina em transição e uma das coordenadoras da Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, conduz o debate. Cabelos negros e longos, há 20 dias ela fez lipoescultura para tornear os quadris e implantou duas próteses de silicone, num total de 450 ml. Esse tempo é foda."Ela é colocada embaixo do músculo e como no frio os nervos se contraem involuntariamente, eu sinto um pouco de dor".

Casada, pós-graduada em Design, Marketing e Propaganda, foi a protagonista da minha Tese de Conclusão de Curso (TCC). Em nossos raros encontros, nunca comentei sobre o resultado final da entrevista que fiz há um ano. Ficaria difícil explicar como é possível apresentar um livro-reportagem com apenas duas personagens (a outra foi Paulo Mariante, do Identidade, grupo GLBTT de Campinas). Felizmente, a boa reputação de quatro anos na Universidade Santo Amaro serviram para amenizar as críticas dos jurados da banca.

Com ar professoral, Alessandra contém a ansiedade de Gil, no documento, Givanilde, transexual masculino e militante do movimento de moradia. Ele tenta aguardar sua vez para falar entre um cigarro e um gole de cerveja. Trata com carinho Cinthia, no RG, Edílson, transexual feminina com estilo de estudante esforçada e apaixonada por informática.

Ao meu lado, Renata, aquela travesti franzina e articulada sobre quem já comentei no primeiro parágrafo, não lembra nem um pouco os estereótipos dos programas de risadas gravadas. Na outra ponta da mesa, David, um cara que trabalha na parte administrativa da Associação.

No exato momento em que Barry White aparece na tela da TV da lanchonete a dinâmica começa. O tema de hoje é auto-estima. Primeiro, Alessandra pede para nos apresentarmos, dizermos como chegamos ao Quintas-Trans e o que nos faz feliz. Renata começa com o pé-direito: diz que soube dos encontros através do site e se sente bem quando fuma um baseado e faz palavras cruzadas. Já Gil, conheceu a APOGLBT quando caminhava no centro com uma amiga casada com um bombeiro e foi abordada por militantes. Começou a freqüentar, estreitar laços, se tornou parte do Fórum Municipal de Travestis, Transexuais e Transgêneros e com o tempo soube das reuniões. É feliz quando está com pessoas bacanas, como nós. Não me lembro como Cinthia chegou até ali, mas sei que ela curte compartilhar lembranças e andar de ônibus. David tem uma história parecida com a de Gil. Também encontrou um ex-presidente da entidade, quando este fazia panfletagem na Rua Vieira de Carvalho (um dos principais redutos GLBTT em São Paulo). Como fazê-lo feliz? Não sei se entendi errado, mas fiquei com vergonha de perguntar. Eu ouvi ele dizer que basta um fist fucking, mas não tenho certeza. Antes que você vá procurar no Google, essa é uma prática em que um dos parceiros enfia mão e punho no ânus do outro. Aguarde errata.

Gil comenta alguma coisa e eu perco a parte em que Alessandra explica como chegou à Associação, mas ela diz que se sente feliz ao lado do marido e quando sair dali ficará com ele. Só para você saber, eu disse que descobri a reunião quando pesquisava para o meu TCC e o sorriso da minha filha de um ano e três meses é o que me deixa mais feliz.

Vendedores de flores e de amendoins vão e vem, enquanto surgem discussões sobre a luta para alterar o nome nos documentos. Renata acredita que a construção da auto-estima é mais difícil para pessoas que sofrem com o julgamento negativo a maior parte do tempo."No meu caso foi um processo solitário até encontrar outras como eu. Muitas vezes a baixa auto-estima está relacionada com falta de informação".

"Estamos sempre vulneráveis e durante meses eu acordava com espasmos porque tinha medo de sair de casa. Tinha pavor de dormir porque ia acordar mal. Isso só mudou quando passei a dizer para mim mesma, ao acordar, que não iria ser agredida", comenta Alessandra Saraiva.

Na última parte da dinâmica, ela distribui um teste de auto-avaliação. São três folhas azuis com perguntas como “eu me sinto bem com as expressões do meu rosto, com meus modos, maneira de falar e de me mover?”. Devo assinalar de zero a quatro. O zero equivale a “nem um pouco” e o quatro a “totalmente”. Nessa eu coloquei um, que corresponde a “um pouco”. No final atingi 35 pontos. Estou no nível, “beleza, não chega a ser uma bosta, mas precisa melhorar isso aí”.

Por volta das dez da noite, minhas pernas estão quase congeladas e eu mal consigo evitar tremer. O encontro está para acabar, mas ainda dá tempo de uma observação. "Antes de sermos militantes, somos pessoas sujeitas a preconceitos que carregamos desde a infância. O fato de estarmos no movimento não significa que somos resolvidas. Todo mundo é maluco, não dá para confiar 100% nas pessoas e aguardar a aprovação dos outros." Assim falou Renata.

Foi uma noite muito agradável e talvez não tenha competência para lhe fazer acreditar que Cinthia, Gil, Renata, David e Alessandra são pessoas que passariam impunes na multidão, sem chamar atenção da cidade de prédios com vista para outros prédios cinza. Ao menos até mostrarem o que pensam e em que acreditam.

Links:
Quintas Trans:
www.quintastrans.blogspot.com
Telepizza-Esfiharia:
http://www.telepizzalaranjao.com.br/

7 comentários:

Anônimo disse...

É Beto, meu caro amigo, até o presente momento não tinha dúvidas quanto à sua capacidade como jornalista, mas, após a leitura de seus artigos, não tenho dúvidas é de que faltam muitos iguais a você, muitos que divulguem o que acontece na vida real, sem a máscara das grandes redes, ou sem a censura do nosso "governo", gostaria de parabenizá-lo pelo seu trabalho, desejar-lhe uma belíssima carreira (que certamente você vai trilhar) e lhe fazer um grande pedido, por mais que um dia você venha a substituir um ícone como Cid Moreira, não esqueça seu lado humano e não se deixe pressionar cara, porque é devido à falta de pessoas como você em todos os âmbitos de nossa "sociedade", que estamos indo diretamente de encontro ao caos, se cada um de nós tiver acesso a mais informação e realidade como você mostra aqui, talvez, um dia, teremos uma sociedade mais justa. Meus sinceros parabéns!

Camila M. disse...

Luiz,
gostei muito dos textos e principalmente da maneira como aborda e narra os fatos. Muito foda! Vou ler sempre que puder!
Beijo,
Camila

ps: eu sou a Camila Muniz que estudou com vc na querida unisa...

Unknown disse...

Realmente ficou incrível sua matéria...como realiza seus textos, a luta de ir construindo tudo isso!!!!
Parabéns por mais uma matéria realizada com sucesso!!!!
Vc é merecedor.
Fabiana

Marcio Brigo disse...

Quanto tempo vai levar para que nós tenhamos conciência que ser humano basta, não precisa ser branco, hetero, mulher ou criança. Basta Ser Humano.
Não me excluo, as vezes também não percebo.
Forte abraço,
Muito bom jornalista.

Anônimo disse...

Grande Luiz!

Cara, por uma coincidência enorme, ontem, por acaso, passei na banca de jornal de um amigo, que não gosta de ser chamado de jornaleiro, mas, sim, de 'distribuidor de cultura', e folhei uma revista que está em sua primeira edição. Trata-se da Brasileiros. Tenho que dizer: me apaixonei pelo texto logo no editorial! A matéria de capa, que traz a foto do ator Lázaro Ramos no filme 'Ó pai, Ó', cujo título é 'Preconceito: uma praga que divide o Brasil', escrita por Chico Silva, retrata um país que, após anos, começa a assumir que é, sim, preconceituoso. Graças a Deus! Um grande passo já foi dado.

O texto é extremamente convidativo à reflexão sobre os mais variados preconceitos que a sociedade têm embutido em suas caras e bocas. Sensacional. Profundo. Narrativo. Informativo. E, até mesmo, contemplativo. Leitura indispensável. Eu indico.

Hoje, leio sua matéria-artigo. Seria suspeito se fizesse algum elogio ao texto. Sou suspeito para isso, acho. E me veio à cabeça a constatação: todos devemos nos mover. Fazer nossa parte. De uma forma ou de outra. Não importa como, mas faça.

Então, digo: você está fazendo a sua. Sinceramente, uma grande contribuição para a elucidação daquilo que, normalmente, causa ojeriza naqueles que nem mesmo se deram ao trabalho de tentar entender o porque de algo ser do jetio que é.

Meu grande amigo,

Você faz um excelente trabalho! E essa é a idéia.

Forte abraço,

Flávio Rodrigues

Anônimo disse...

ola como faço para ter acesso a seu TCC, sou psicologo e estudante do tema trans, gostaria de ler mais sobre o assunto, se voce tiver em formato digital, por favor envie para mim.

nucleopsicologia@bol.com.br
abç
Pedro Lima

Daiana Rodríguez disse...

Fantástico Sou estudante de jornalismo e estava navegando por este mundo sem fim que é a Internet e me deparei com o seu primoroso texto.
A riqueza de detalhes, a forma como narra... muito bom. Meus parabéns.
São de profissionais assim que a mídia brasileira necessita. São de textos desse tipo que deveríamos nos deparar ao folhear o jornal diário ou a revista semanal. Infelizmente isso não acontece...