quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
De flores e curativos
Por Washington Luiz Araújo
Último dia de ano, duas e meia da tarde, sol escaldante lá fora, ar refrigerado numa farmácia do Flamengo, Rio de Janeiro. Estou comprando meus últimos suprimentos para entrar no ano novo sem dor de cabeça, já que não comprei o suficiente para as noites anteriores e minha “cachola” estava pagando por isso.
Ao adquirir meus envelopes de Engov ouço uma voz: “moço, o senhor tem um pedaço de esparadrapo?”. Não. Foi o que respondeu de pronto o balconista. Até processar o diálogo na minha combalida cabeça ressacada, o rapaz que solicitou o pedaço de curativo já estava saindo da farmácia.
Acompanhei seus passos claudicantes e vi que parou atrás de um monte de flores e ali sentou. Comprei uma caixinha de band-aid, por R$ 1,29, tirei dois e levei até o vendedor de flores que sofria com o sapato apertado. Vai saber quanto tempo não usa um calçado novo? Entreguei os curativos e ouço um muito obrigado, além da oferta de flores. Poderia pegar as que eu quisesse.
Encabulado, não querendo dar muito prejuízo, pego um botão de rosa vermelha, mas este traz outro enganchado pelos espinhos. Tento soltá-los, mas ouço o rapaz: “Pode ficar com os dois e feliz ano novo”. Certamente, os dois botões custavam bem mais do que a caixinha de esparadrapo, da qual só subtraí dois curativos e fiquei com o restante.
Saí, com cara de bobo alegre, ostentando as duas rosas, com espinhos e tudo. São estas rosas que ofereço a vocês.
E o ano novo começou.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Entrevista: Renata foi ao Paquistão
A fotógrafa paulistana Renata Castello Branco, 53, filha de um piauiense com uma gaúcha, caminhou durante oito meses pelas ruas da maior comunidade de São Paulo. A câmera digital Cannon foi seu passaporte para ingressar na euforia e na melancolia dos anônimos que compõem as 140 páginas do livro “Heliópolis”.
Por sugestão do Secretário de Educação da Cidade de São Paulo, ela resolveu deixar o estúdio na Vila Mariana, em dezembro de 2007, para registrar a vida presente nos cultos, nas conversas de calçada e nas roupas estendidas no varal.
Também visitou o Paquistão, um lugar onde nem mesmo a união dos moradores tem grande influência. Foi aí que precisou usar a lábia e o poder da imagem.
Com apoio da Fundação Padre Anchieta e da própria Secretária Municipal de Educação, a editora DBA lança na quarta-feira, dia 10 de dezembro, o resultado dessa imersão. A noite de autógrafos de “Heliópolis” acontece às 20h, no Centro Cultural São Paulo.
É uma oportunidade única: por problemas burocráticos, o material não poderá ser vendido. Quem comparecer levará para casa uma edição da obra que será distribuída para escolas da cidade.
Um dia antes do lançamento, Renata recebeu a reportagem de Anonimato S/A para falar sobre o início da carreira, os bastidores do projeto e a interferência da imagem na vida do cidadão comum.
Como surgiu sua paixão pela fotografia?
Renata Castello Branco – Quando eu tinha 17 anos, meu pai, Renato Castello Branco – um publicitário que começou a vida como escritor – se aposentou e resolveu fazer um trabalho com cunho jornalístico sobre Sete Cidades, um parque de formações rochosas no Piauí. Ele me levou junto, porque eu tinha interesse em arqueologia. Comprou uma (câmera) Nikkon e jogou na minha mão, pedindo para eu fotografar as formações e as inscrições rupestres. Eu adorei! Até fui fazer faculdade de História, mas no meio do caminho já sabia que não era isso que eu queria.
E o primeiro emprego?
Renata – Antes da faculdade eu fui trabalhar no estúdio do Chico Albuquerque, o maior de São Paulo na década de 1980. Ele foi o responsável por fazer a transição da ilustração para a imagem na publicidade. No acervo dele eu encontrei coisas incríveis, como propagandas que eram metade ilustração, metade fotografia. Desenhava-se uma escadinha na parede e uma luminária, bem rudimentares, e aí fotografavam uma mulher de forma que parecesse subir os degraus.
A estrutura era boa?
Renata – Cheguei em um período de muito investimento. Para fotografar um fogão, montava-se uma cozinha inteira dentro do estúdio. Era a época da grana, a mídia impressa tinha um valor enorme. Depois, saí para fazer faculdade, mas já começava a pegar uns trabalhinhos. Comecei a trabalhar com publicidade, iluminação e depois com retrato, que eu sempre gostei e aprendi a fazer com seu Chico. Passei a fazer muitos retratos empresariais, corporativos, de campanha política e acabei conhecendo os marqueteiros. Descobri aí o segmento que é meu foco: fotografia para campanha pública. Eu trabalho mostrando a gestão dos governos.
O livro Helíópolis tem um enfoque publicitário?
Renata – Não tem, mas surgiu a partir de um contrato que fechei com a secretaria de educação para falar sobre a gestão de uma forma geral. O secretário, que tem uma visão abrangente, encomendou um livro autoral sobre Heliópolis, porque a comunidade possui um projeto educativo muito interessante. Ele sugeriu que fosse feito dentro de um pacote de coisas que eu estava produzindo, mas com total liberdade.
O que você destaca no processo de elaboração do livro?
Renata – A parte testemunhal foi o que me encantou. Não deixa de ser uma delícia ver o livro pronto, mas o grande barato foi a jornada: entrar nas ruas, andar aleatoriamente por elas, pelos becos, buscando o que tem atrás de um varal, de uma porta entreaberta. Ouvir histórias, tomar cafezinho com as pessoas, ouvir desabafos. Uma relação que só foi possível porque eu tinha uma câmera pendurada no pescoço. A câmera fotográfica foi uma espécie de passaporte para interagir com as pessoas em uma comunidade que tem uma associação muito atuante (UNAS – União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco).
Qual era sua pretensão quando você começou a fotografar?
Renata – Nenhuma. Entrei lá rasa. Inclusive, no começo estava no caminho errado. O primeiro contato que eu tive foi através da UNAS e se eu não tinha nenhuma amarra nem com a prefeitura, nem com o secretário, me sentia atada à entidade. Porque eles estavam me mostrando a fachada institucional. Não que eles falaram o que eu tinha que fazer, mas, naturalmente, mostraram os projetos que desenvolviam. O primeiro passo foi perceber a necessidade de andar aleatoriamente, conversar, conhecer e entender aquele lugar, focando em coisas que iriam contar a história que eu gostaria.
Você encontrou alguma dificuldade para registrar as imagens?
Renata – Sempre havia alguém me acompanhando, você só circula acompanhada. Tem os lugares que a UNAS leva porque sabe que as pessoas vão gostar e onde o acesso já está negociado. Existe uma realidade paralela, não há um dia em que se ande por lá e não se veja o tráfico acontecendo ao lado. É uma coisa consentida. E eu queria ir nesse lugar aqui (aponta a imagem de um espaço chamado Paquistão, onde há a inscrição: “como pode um soldado pregar a paz, se foi treinado para a guerra”), só que a UNAS não tem acesso. Quando me dei conta, estava negociando com traficante para conseguir entrar. É o lugar mais barra pesada da comunidade, onde a influência da UNAS não existe. Recebi telefonemas em que ouvi coisas como “nós vamos te acompanhar, mas você vai fotografar as crianças do hip hop. Você não quer ir embora sem sua câmera, né?”.
Como os moradores a recebiam?
Renata – Com uma exceção, não houve resistência. Só encontrei problema quando comecei a fotografar umas casas que estavam sendo demolidas e tinha uma encrenca qualquer com a prefeitura, algo ligado à desapropriação, não sei bem. E aí ouvi umas coisas ruins, algo como “te meto uma bala na cabeça”. Mas, 90% do tempo fomos super bem recebidos. Tem também essa coisa da câmera digital que você fotografa e a pessoa compartilha na hora. Muitas vezes eu me colocava no lugar dos moradores e pensava que eu não gostaria de ser fotografada em uma casa de palafita, numa condição muito difícil, mas as pessoas eram receptivas.
Houve algum outro momento de tensão?
Renata – Em uma oportunidade, no Paquistão, estávamos numa ‘fusqueta’ lá da prefeitura, quase uma Brasília. O menino que guiava era um garoto de boné. Meu assistente também estava de boné. Mesma coisa um outro rapaz da rádio comunitária que nos acompanhava. E eu e minha coordenadora sentadas no banco de trás. Acho que os policiais pensaram que era um seqüestro e chegaram apontando armas para a cabeça deles. Foi complicado explicar que eu e ela não éramos vítimas.
O que a surpreendeu?
Renata – Uma das coisas que mais chamou minha atenção foi uma história que o Gil, fotógrafo da comunidade, contou. Ele nos explicou que uma região colada à essa do Paquistão sofria dos mesmos problemas e não era acessível. Até o tráfico entrar e moralizar. Não rola mais briga, não se vende droga para os menores de lá de dentro, não tem tiro à noite. Depois que o tráfico entrou e estabeleceu uma porção de regras, entra até caminhão das Casas Bahia, que não chegava. O tráfico faz o papel que o Estado deveria fazer.
Você tem filhos? Conversou com eles sobre a rotina das fotos para o livro?
Renata – Sim, tenho dois. Minha filha mora no Rio de Janeiro, então conversava mais com meu filho de 19 anos, que mora comigo. Eu contava meu dia-a-dia para ele, mas não é diferente do que fiz a vida inteira. Sempre procurei mostrar um lado que não é o que ele vive. Que a vida não é só Itaim e Nossa Senhora das Graças. Quando ainda era pequeno, vimos juntos o documentário do ônibus 174 e falarmos sobre absurdos como aqueles mauricinhos que botaram fogo no índio, em Brasília. A rotina não mudou por ter esse trabalho. Eu sempre me preocupei em conversar com eles sobre essas questões, não foi diferente nessa ocasião.
Como sua atividade pode interferir na vida das pessoas?
Renata – Eu acho que o fato da prefeitura escolher Heliópolis para fazer esse trabalho é um reconhecimento de que se trata de uma comunidade importante. A maneira como a comunidade está representada no livro é legal para a auto-estima, mesmo sendo impossível não mostrar as dificuldades. Mas, estão também representadas a força, o vigor, a criatividade, a alegria. E isso só há de melhorar a auto-estima. Não que seja ruim a auto-estima deles, acho que eles estão bem. Como trabalho com governos de Estado, prefeituras do Brasil, já estive em outras comunidades. Há três anos faço a Baixada Fluminense, a região da Guarapiranga, em São Paulo, então, tenho parâmetros para comparar e dizer que Heliópolis é a mais organizada.
Você manteve laços de amizade com as pessoas?
Renata – Eu não vi mais as pessoas com quem convivi, verei novamente amanhã (dia 10 de dezembro, data de lançamento do livro). O Régis, da Rádio Heliópolis, estará lá e virá um ônibus da comunidade. Lembro de algumas pessoas com muita admiração, mas estabelecer laços de amizade é difícil. Eu estou aqui e eles lá. Mas, com certeza, se precisarem de alguma coisa sabem que podem contar comigo. Isso eu acho que a gente pode chamar de laço de amizade.
Qual a visão que a obra apresenta sobre Heliópolis?
Renata – A síntese para mim é que a comunidade, pela condição de vida das pessoas, tem um tanto de dor, mas muito de alegria e de criatividade. Essa alegria passa de dentro das casas para as ruas, coloridas, grafitadas. Você anda por lá e sempre há alguém ouvindo música alto, as pessoas conversam muito, brincam. É uma comunidade que tem a polaridade muito forte. A dor e a alegria são sentimentos que convivem paralelamente o tempo todo. Essa foi a realidade que eu vi.
Serviço
Heliópolis”
Editora: DBA (Dórea Books and Art)
Fotos: Renata Castello Branco
Projeto gráfico: Sylvain Barré
140 páginas
Lançamento: 10 de dezembro, quarta-feira, a partir das 20h, no Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000, Paraíso/SP).
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Brasil: sétimo lugar na Copa de Rua
Foi por pouco: a derrota por 5 a 4 para a Rússia impediu que a seleção brasileira de futebol de rua chegasse às quarta-de-final do torneio. Ainda assim, foi a melhor campanha da equipe nos últimos cinco anos.
Uma forte chuva a poucos minutos do início da partida contra o time russo deixou o piso molhado e provocou muitas contusões, inclusive do goleiro brasileiro Diego. Apesar do resultado desfavorável, a seleção mostrou um grande poder de superação. Depois de tomar 4 gols no primeiro tempo, tirou a diferença, mas não alcançou o empate.
No jogo seguinte, o Brasil venceu a Ucrânia nos pênaltis e ficou com o sétimo lugar.
O campeão desta edição da Copa foi a seleção do Afeganistão, que derrotou a Rússia por 5 a 4. Em terceiro ficou Gana, seguida por Escócia, Quênia e Inglaterra.
De acordo com a assessoria brasileira, fora de campo a disputa foi importante para os países latino-americanos (Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Colombia e Mexico) estreitarem laços visando a criação de um movimento regional e a disputa da Homeless World Cup em 2010, na América do Sul, muito provavelmente no Brasil.
A seleção brasileira jogou 12 partidas, venceu duas, fez 92 gols e sofreu 30, saldo positivo de 62 gols.
Jogos do dia 02/12
Brasil 4 x 6 Ucrânia
Brasil 11 x 1 Malaui
Brasil 15 x 3 Argentina
03/12
Brasil 8 x 3 Timor-Leste
Brasil 8 x 1 Lituânia
04/12
Brasil 11 x 0 Hong Kong
Brasil 7 x 3 Noruega
Brasil 10 x 4 Quênia
05/12
Brasil 2 x 1 Portugal
Brasil 9 x 0 Hungria
06/12
Quartas de final:
Brasil 4 x 5 Rússia
07/12
Disputa do sétimo lugar
Brasil 3 (1) x (0) 3 Ucrânia
* Brasil venceu por 1 x 0 nos penâltis
Para ler a reportagem sobre a preparação da equipe, visite nosso site: www.anonimatosa.com.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Flores sobre o túmulo
Caso o poeta realmente tenha razão, o Largo General Osório, na região do centro velho paulistano, é uma explosão de flores sobre o túmulo do samba. Não em sinal de nostalgia, mas numa sublime nota de resistência.
A esquina da Rua General Osório com a Rua dos Andradas, onde duas dezenas de pessoas se juntam às portas de um bar e em torno de cuíca, cavaquinho, bandolim, pandeiro e outros objetos que viram instrumentos de percussão, é um aperitivo antes do apogeu. E um exemplo de democracia. Na altura do número 98, do lado esquerdo, a placa indica Osório com ‘s’. Do lado direito, o endereço vira Ozório. Para evitar o embate, vamos pelo apelido: eis a Rua do Samba Paulista.
A nata do estilo musical se reúne todo último sábado do mês em apresentações conhecidas por já terem recebido quase todos os bambas da cidade e mesmo de outros estados. Sob uma tenda branca, em cima de um pequeno palco, embaixo de holofotes e cercado por grades de proteção, os 11 integrantes do Samba Autêntico, grupo de pesquisa sobre o samba paulista, ensaia antes de começar a edição de aniversário.
Seis anos e 72 encontros depois, o espetáculo não acontece mais em frente à loja de instrumentos musicais Redenção: em 2006, passou a fechar uma via no bairro Santa Ifigênia, paraíso de produtos eletrônicos. Partiu de uma platéia de 150 pessoas para reunir cinco mil perante a maior sala de concertos de música erudita da América Latina: a Sala São Paulo, no Complexo Cultural Júlio Prestes.
A regra e o mestre – “A nobreza gosta da música, mas não chega para ver e ouvir”, comenta Roberto Oliveira dos Santos, o Beto, integrante da UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), uma das responsáveis pelo evento. Egresso dos movimentos estudantil e sindical, ele define o encontro como uma roda com viés político, cultural e transformador. Econômico também. “Optamos pelo último sábado do mês porque todo mundo está duro”.
A preocupação, segundo conta, é fazer política cantando sambas de raiz, sem transformar o espaço em palanque. No intervalo para o descanso dos músicos, Beto e a direção da UNEGRO utilizam o microfone para lembrar à platéia, majoritariamente jovem e vestida para a balada, que a Rua do Samba é “radicalmente favorável às políticas de ações afirmativas, às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial para acabar com a centralização de renda”.
Ele não é sambista, então faz as vezes de mestre de cerimônias e ouvidor. Após receber reclamações do público feminino a respeito de letras machistas, resolveu conversar com os partideiros. O resultado foi a roda de samba das mulheres, que acontece em março. Ao menos neste mês elas é que mandam no terreiro.
A regra da rua é simples: velha guarda entra sem pedir, quando quiser, ao contrário dos novos compositores, submetidos ao crivo de Paulo Roberto Mateus, o Mestre Paulo, paulistano da Casa Verde e filho de um dos fundadores da Unidos do Peruche. Da mesma forma que Beto, Mestre Paulo tem um boné com o nome pintado. Diretor de bateria da Peruche, ele passou a integrar o grupo Samba Autêntico em 2003, quando o irmão caçula o convidou para dar moral ao projeto que engatinhava.
Roda do acarajé – São três horas da tarde do último final de semana de novembro e a música acaba de começar. Gerson Nascimento está vestido de acordo com a ocasião. Usa filá, tradicional chapéu africano, camisa com faixas horizontais vermelha e preta e as letras MPLA na altura do coração, sigla de um partido político angolano. Tudo isso para vender acarajé e algumas outras peculiaridades na Rua do Samba: cuscuz, bolo de mandioca, vatapá e xinxim de galinha, que acompanha arroz. O forte da barraca, porém, é o acarajé. Em média, comercializa cerca de 100, vendidos a R$ 4 cada.
A barraquinha do soteropolitano não tem concorrência. Ao seu lado estão uma de espetinho e mais seis de lanches como cachorro-quente.
Aos domingos, na feira da Praça da República, o figurino muda e ele se torna um típico baiano para turistas, com roupas brancas e demais apetrechos. Lá, vende sete tipos de comidas baianas e, neste caso, o acarajé perde a majestade, mas não o lugar no coração de Gerson.
Foi graças ao quitute que comprou um apartamento na Rua Aurora, depois de chegar a São Paulo na década de 1980, quando trabalhou registrado como caseiro no Itaim Bibi. Após três anos, viu que seu caminho era outro e passou a vender pastel e caldo de cana no bairro da Santa Cecília. Mas, o acarajé estava no sangue, tradição de mãe para filho, que botou em prática logo depois de ingressar no ramo da alimentação. No futuro, se Deus quiser, financiará um “negócio de portinha”, que atenda ao público durante a semana.
A outra roda – J. Guerra, o bar entre as duas versões de Osório, é um típico boteco das antigas: pouco espaço, torresmo exposto atrás do vidro, mesa na calçada e diversos sotaques. O único sinal de modernidade é o copo de plástico, para evitar prejuízo com a batucada e o tremelique da mesa.
João Correia é um cliente exemplar. Historiador carioca de 46 anos, ele tem cabelos compridos, barba comprida e umbigo no balcão. Apesar da carteira de ator profissional, trabalha desde sempre na informalidade, com coleta de dados para pesquisa e, atualmente, na elaboração de projetos sociais para adolescentes em situação de risco.
Quando comento que acho interessante ele não ter perdido o sotaque carioca em 26 anos de São Paulo, logo define: “Minha avó era cearense e deixou o nordeste aos 20 anos. Até o fim da vida não falava vermelho, mas sim encarnado”. Está explicado.
Filho de mãe militante do PT com pai militar (“um milico dos novos tempos, votou no Gabeira”), identificou-se mais com o espírito materno. “Sou um bicho vira-lata da rua, gosto de manifestações culturais na rua. Essa forma de expressão é mais autêntica e transformadora, na medida em que as pessoas passam a conhecer as origens e a própria cultura. Fico emocionado”, diz.
Correia prefere o boteco da Osório com a Andradas ao largo porque o primeiro lhe parece mais com o formato original da Rua do Samba. “No largo, a coisa é mais democrática porque mais pessoas participam, mas aqui na esquina é mais resgate, mais fundo de quintal. Lá é o Rio de Janeiro, glamuroso. Aqui é Niterói, a cidade sorriso”.
Em um ambiente multiétnico, mas predominantemente negro, uma mulher de pele alva, cabelos loiros e óculos escuros desaparece após a fotografarmos na calçada do J. Guerra. Descobrimos que Lúcia é seu nome, mas todos a conhecem como Gringa do Pandeiro. Com esse pseudônimo, a argentina morre de medo de seqüestro. “Talvez pensem que eu tenho euros”. Por isso, não revela o sobrenome e permite apenas que registremos o pandeiro, posto na altura do peito, junto à camiseta com a imagem de São Jorge. “É ‘mía’ alma”, define.
Apesar de viver há três décadas no Brasil, desde quando o marido engenheiro chegou a trabalho, conserva o sotaque castelhano. Aos desembarcar em território brasileiro, passou dois meses na capital carioca, antes de se estabelecer no bairro paulistano do Campo Belo, onde mora desde então. Professora aposentada de inglês e espanhol, formada em piano, sempre amou a música, especialmente o samba.
Gringa do Pandeiro carrega a paixão pelo apelido no pulso direito, repleto de calos. “Toco todos os dias. Às vezes uma hora, quando a dor na coluna ataca. Mas, se estou bem, são três, quatro horas, lá no fundo de ‘mío’ quintal do samba”, orgulha-se.
No largo ou no bar, a festa prossegue até lá pelas oito da noite e o cenário das imediações não muda. A escuridão se aproxima e o abandono dos prédios e das pessoas parece ficar mais evidente no caminho de volta para casa. Para o bem e para o mal, o samba, pai do prazer e filho da dor, não vai morrer. Desde que o samba é samba é assim.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Meu peru nunca é preso, com habeas corpus sai ileso
Caros leitores, queridas leitoras, respeitável público: a primeira vez com peru é inesquecível e leva três dias. No primeiro dia, existe até peru mecânico – ao invés de touro mecânico – para testar o equilíbrio. O segundo dia é meio morno, como se estivesse ali, localizado bem no meio do evento fantástico, a fim de garantir fôlego suficiente para algo desconhecido, uma sensação que está por vir. Então, no terceiro dia, o auge, o êxtase, a explosão de felicidade e prazer, alegrias maravilhosas que tomam conta de todo o ser.
Calma, calma! Eu posso explicar! A Peruada é um evento tradicional da Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo São Francisco e carinhosamente chamada de SanFran. Ocorre anualmente, na terceira sexta-feira de outubro, sendo considerada uma manifestação político-etílico-circo-carnavalesca, cujas origens alguns dizem remontar a 1948, quando membros do Centro Acadêmico XI de Agosto furtaram nove perus de raça premiados na Exposição Nacional de Animais do Parque da Água Branca e com eles se banquetearam. Na verdade, há registros de memoráveis festas estudantis organizadas para a “libertação” dos calouros dos suplícios do trote: em 1932, um estudante fantasiou-se de Oswaldo Aranha, vestiu a camisa negra do fascismo e fez malabarismos com um chuchu, que simbolizava Getúlio Vargas.
No primeiro dia, ocorre o chamado Grito do Peru. O famoso Vitão, membro do Diretório Jurídico carinhosamente e informalmente incorporado como patrimônio histórico-cultural da SanFran, abre as festividades de uma maneira bastante excêntrica: segurando um peru – vivo – à frente de um grupo composto por duas mulatas que sambam primorosamente e uma banda de senhores tocando marchinhas de carnaval. Todo o grupo sai do Porão, adentra a Faculdade pelo corredor lateral, na rua Riachuelo, e literalmente dizima as aulas em todas as salas, começando pelas do térreo, onde boa parte dos calouros estudam. Cumprida a primeira parte da tradição, junta-se ao grupo a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco – BAISF – e a folia definitivamente toma conta das Arcadas, com o samba animando os estudantes até na sua empreitada sobre o peru mecânico. Mais tarde, precisamente às XI e 08 da noite, ocorre a cervejada pré-peruada, e a “lascívia acumulada” começa a ser liberada.
Desde seus primórdios, a festa não ocorreu apenas de 1974 a 1982, por conta da repressão e censura dos governos militares. Seu nome está ligado ao hábito caboclo de dar pinga aos perus, tonteando-os antes do sacrifício. Assim, considerando que os estudantes – calouros ou não – sorvem o ardente líquido com a mesma submissão e posterior volúpia que os animais em questão, percebe-se facilmente o caráter etílico do evento e a pertinência de sua graça. Aliás, existem antigos alunos que não mais freqüentam o maior evento franciscano justamente porque consideram que ele perdeu seu caráter político, focando somente no etílico. A crítica não é totalmente verdadeira, mas por pouco: os estudantes festejam a Peruada basicamente como uma “micareta open bar”, enchendo a cara de cerveja, vodca e jurupinga, além dos artefatos alcoólicos trazidos de casa, como bebidas cujo aroma não é lá muito agradável e cuja aparência faz lembrar os famosos vinhos “sangue de boi” interioranos.
A paquera também corre solta pela festa, digamos, no formato de pegação desenfreada. Seguindo fielmente os princípios dos Tribalistas, segundo os quais “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, a massa estudantil une seu estado “etilizado” aos feromônios, resultando numa operação de solta e agarra – diferentemente da operação Satiagraha, esta é efetiva – à luz do dia, nas ruas do centro paulistano.
Neste ano, entoando louca e roucamente os primeiros versos do hino do evento – Vai, vai, vai começar a brincadeira / Tem cerveja de graça a tarde inteira / Vem soltar a lascívia acumulada / Vai, vai, vai começar a Peruada – por quase todo o tempo, os jovens se mostraram animados desde a concentração, no número 138 do Largo do Paissandu. A brincadeira, então, seguiu pelas avenidas São João, Ipiranga e São Luís, atravessou os viadutos Nove de Julho e Jacareí – com uma parada em frente à Câmara Municipal para protestar –, passou pela Rua Maria Paula, subiu o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, seguiu pelo Largo São Francisco e pela rua Líbero Badaró, até finalmente contornar a praça Ramos de Azevedo e retornar ao local de origem, lá permanecendo até a noite.
Os protestos, que ocorreram especialmente em frente à Câmara Municipal, refletiram-se nas fantasias e alegorias vestidas e utilizadas pelos participantes. Havia dois rapazes cujos trajes aludiam aos dois militares gays do Exército. O casal buscava chamar a atenção para o preconceito: os chapéus usados por eles tinham detalhes em rosa, bastante chamativos. Havia, ainda, duas moças simbolizando Lehman Brothers, nitidamente satirizando a crise econômica iniciada nos Estados Unidos. Outras belas jovens, em referência à Lei Seca, vestiam-se de táxis, cujas placas traziam os dizeres “Em tempos de Lei Seca, pegue um táxi!”. Foram consagrados no concurso das melhores fantasias políticas e críticas o Vendedor de Habeas Corpus, a Pizzaria 3 Poderes – cuja fantasia relembrava os escândalos com cartões corporativos do governo federal –, os Bobos da Suprema Corte e o grupo do Tio Sam de Calças Curtas.
A festa nas ruas não ficou restrita a universitários. Aliás, longe disso: havia quase uma centena de policiais militares incumbidos de zelar pela segurança, técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego – afinal, centro de São Paulo é centro de São Paulo –, trabalhadores, transeuntes e até mendigos e catadores de latinhas, todos bastante animados, embora muitos sequer soubessem do que é que se tratava aquele “monte de gente pulando com música alta”, nas palavras de um senhor que recolhia latinhas de refrigerante e cerveja enquanto aproveitava todo o aparato musical para, também ele, dançar conforme o ritmo.
Já sem condições inclusive de falar, mas com enorme esforço para resgatar o mínimo de voz na garganta, aqueles que ainda se mantinham de pé cantaram, com sentimento ligeiramente melancólico, os quatro últimos versos do hino da peruada, de autoria de Eduardo Calvert: Vai, vai, vai terminar a brincadeira / Que a cerveja rolou a tarde inteira / Morre o sol, faz-se sombra nas Arcadas / Vai, vai, vai terminar a Peruada.
* Luís Fernando Carvalho, 23. Formado em Relações Internacionais pela Unesp (Franca - 2007), estuda na Faculdade de Direito da USP, trabalha e mora no centro de São Paulo. Viaja muito pelo estado e crê que sua vida seria bem mais próspera se ganhasse milhagens para suas incontáveis viagens de ônibus. Em 2008, participou pela primeira vez da Peruada.
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
Passarela eleitoral gratuita
Já que a Lei da Cidade Limpa fez sumir placas, faixas amarradas de poste a poste e os muros pintados, o jeito foi transformar carros em outdoors e utilizar estruturas que cortam os caminhos congestionados da capital paulista para divulgar a imagem e os números dos postulantes a cargos no Executivo.
Sobre a Avenida Alcântara Machado, mais conhecida como Radial Leste, uma das vias mais temidas por quem deseja ultrapassar os 20 quilômetros por hora que o velocímetro do carro costuma marcar durante boa parte do dia no local, fica a passarela Salvador Rodrigues, um banquete para os grupos de apoio dos políticos.
Na manhã de primeiro de outubro, dia do idoso, Josefa Ferreira, 62, segurava o mastro preto de um bandeira com o nome de Gilberto Kassab, na entrada do lado Mooca da passarela que passa sobre os sentidos centro e bairro da Radial e culmina no lado Brás.
Desde quinta-feira, 25 de setembro, Josefa ganha para ocupar viadutos da região e promover o nome do atual prefeito, das 07 às 13 horas. Até então, tinha dado sorte: tempo frio, sol ameno. Não foi o caso dessa quarta-feira de calor intenso. Mas, ela não reclama, considera a atividade tranqüila. Pode revezar com a senhora que a acompanha e descansar sentada no chão. Para não ter problemas com os raios ultravioletas, usa um boné jeans para proteger o rosto arredondado e procura esconder o corpo de 1,52 sob a sombra da construção que serve de abrigo também para um vendedor de churrasco. Assim aguarda a chegada do “fiscal” que a levará de volta para casa.
Vestindo jaleco verde com o nome de Kassab, tênis branco e óculos de aros redondos, os quais esconde para tirar fotos, ela conta que mora no bairro Juscelino, região de Itaquera. Soube da vaga de apoiadora por meio de uma associação de idosos chamada Novo Amanhecer. “Não há nada prometido, mas disseram que se precisarem da gente depois para alguma coisa podem até chamar”. Ela fez ficha, deixou todos os dados.
O primeiro emprego foi em Pernambuco, aos 13 anos, em uma fábrica. O único “fichado”. Aos 14 veio para São Paulo com a madrinha e a mãe de uma amiga. Até completar 20 anos, trabalhou em casas de família. Depois, casou e o marido não deixou mais que ela trabalhasse fora. Há 10 anos, o esposo faleceu, vítima de diabetes. “Se não fossem meus filhos já teria voltado para Recife”, comenta, citando os quatro que teve em território paulistano.
O que mais incomoda Josefa Ferreira são os problemas da saúde pública, o tempo que demora para marcar uma consulta e o custo de vida. “Quando eu cheguei, dava para ganhar dinheiro em São Paulo. Era disso que mais gostava. Agora, nem isso dá mais”.
Será que votará no patrão a quem diz não ter a honra de conhecer pessoalmente? “Sim, estou trabalhando para o homem. Fazer o quê? Não posso trair”.
Logo à frente, Celso Jatene, vereador candidato à reeleição, revela-se um estrategista, verdadeiro Vanderlei Luxemburgo do pleito. As doações ao time Scorpions, da Vila Antonieta, bairro da zona leste, geraram voluntários. Não me refiro aos gandulas, mas aos próprios atletas da equipe.
Caso de Ricardo Pontes, 23, goleiro da equipe e um dos três craques sobre a Salvador Rodrigues. Armazenista desempregado, casado e pai de uma filha, atuou entregando panfletos nas eleições anteriores e agora segura uma faixa de plástico com a imagem, o nome e o número de Jatene na parte central da passarela. De acordo com a Lei da Cidade Limpa, não poderia fixar qualquer objeto de propaganda no local de trânsito de pedestres, porém, honestamente, com um sol de rachar quem é que vai implicar se ele amarrar as hastes de madeira ao corrimão com um arame discreto e colocar a mão por cima? Uma gambiarra inofensiva e imperceptível, já que o material não está pendurado.
Barba por fazer, não é mais garoto e assim mesmo recebeu alguns lembretes dos coordenadores da campanha: não sujar o espaço público e não jogar nada na avenida. “Somos a imagem do cara”, diz, referindo-se ao representante do PTB e ciente da responsabilidade que lhe cabe.
Às vezes senta sobre um caixote, às vezes bate um papo com os colegas de labuta. Sobretudo, é um homem de opinião: não votará em Celso Jatene. Já para prefeito, escolheu o chefe de Josefa. “Minha expectativa é que o Kassab mantenha e acelere o que está fazendo. Se outro entrar, vai ter mudança e aí pára tudo o que já tem. A saúde no nosso bairro melhorou, mas emprego ainda está difícil”, aponta.
Depois de sexta-feira, Pontes deixará a passarela e voltará à fila dos desempregados. Com um boné para se proteger do sol.
terça-feira, 9 de setembro de 2008
Fragmentos da independência
Apenas um homem não integrava o grupo de segurança nacional, justamente aquele que não pagou por qualquer garrafa ou maço de cigarros, mas bebeu e fumou. Sem injustiça, às vésperas da semana da pátria, devo dizer que retribuiu o favor com música.
Ao observar a aproximação de um trio de velhinhos empunhando bumbo, caixa e trompete, Gibran Santos, 28, entendeu o convite e juntou-se a eles para uma sessão de Aquarela do Brasil. Pegou o sax soprano fabricado com canos de PVC e palhetas de EVA e improvisou.
Ainda falta passar fibra de vidro e resina para deixar o som encorpado: o instrumento vibra um pouco e não é capaz de sustentar as notas mais longas. Com esse último toque, não irá falhar.
O quarteto formado pelos velhinhos e o saxofonista entoa alguma coisa que lembra ao senhor Almeida o hino do Corinthians. E ele canta:
“Corinthians graaannndeeee”.
“Porra, você é palmeirense”, diz o filho.
“Foda-se. Música é música”, revida o pai.
“A boquilha é original e igual a de um sax comum”, explica Santos ao comentar que já vendeu cerca de 10 exemplares do modelo por até R$ 500. Normalmente, o preço é a metade disso.
A voz grave se opõe ao corpo franzino de adolescente e ao visual de skatista: boina preta, calça e camisa largas. Gibran Santos cruza a cidade sobre uma tábua preta com quatro rodas azuladas e uma mochila escura. Leva também uma capa para o instrumento de sopro e para o afinador eletrônico adaptado à uma bateria de celular.
Parte do dinheiro para pagar despesas como o apartamento na Vila Madalena onde mora ao lado da atriz formada em Hotelaria, Carolina Mesquita, sai do patrocínio da marca Skate Até Morrer. Outra fatia vem dos trabalhos free-lancer de barman e, claro, há ainda o pedaço que depositam após canções interpretadas no lado de fora do Museu de Arte de São Paulo (MASP), às terças, e na Praça Benedito Calixto, aos sábados. Por noite, tira algo entre R$ 20 e R$ 50. “No Brasil é osso. Tenho um amigo que mora na Irlanda e também toca na rua. Consegue tirar 600 euros. O máximo que consegui foi R$ 150 depois de oito horas de som em um dia de São Silvestre. Até judeu ajudou”. Foi uma bela jornada.
Santos foi registrado em São Paulo, mas nasceu na cidade de Ponta Grossa, Paraná. Até 15 anos foi criado pela avó, mas resolveu vir para a capital paulista tentar a vida com o pai. A química não funcionou bem e optou por morar na rua. Dormiu diversas vezes na Praça Osvaldo Cruz, onde começa a Paulista. Aprendeu a ser auxiliar de cozinha e a fazer artesanato. Jamais pediu esmolas e desde cedo usou a arte como moeda de troca.
O dono de uma pizzaria e uma gaita lhe salvaram a vida. Fascinado pelo talento de um homem chamado Mutamba, o então adolescente começou a se aproximar do músico da Vila Madalena até que este aceitasse ensinar o domínio do instrumento. Inicialmente, o “professor” recusou. “Bebendo desse jeito, com essa idade, não vai longe. Nem vale a pena começar”, lamentou o mestre. Era a fagulha que faltava para maneirar com o álcool. Quem diria: inconscientemente adaptou-se aos novos tempos de Lei Seca. Só dirige skate e um copo de cerveja já é o suficiente.
As influências musicais vão de John Coltrane a Deep Purple. De Dire Straits a Tom Jobim. Gosta também “daquela mulher, como é mesmo o nome? Regina (pausa)...”
“Elis Regina”, digo.
“Isso, minha memória não é boa para nomes.”
Após completar 18 anos, foi morar em uma pensão com a ajuda do pai. Em 2002, na garupa de uma moto foi atingido por um veículo que passava pelo cruzamento da Consolação com a Dona Antônio da Queiroz. Aos 22 anos, perna quebrada, resolveu buscar algo para passar o tempo e encontrar uma forma original de unir diversão e dinheiro. Lembrou do sax de bambu que comprou numa viagem ao Rio de Janeiro e começou a desenhar um aparelho com as ferramentas que possuía em casa. Surgiu o primeiro saxofone artesanal, cujo projeto já foi patenteado. A idéia é buscar patrocinadores para produzir em larga escala e oferecer a escolas.
Planeja ainda comprar uma casa junto com a namorada. Um lugar amplo que sirva de ateliê e oficina para desenvolver outros instrumentos como um trombone.
Desapegado a tudo, define-se como uma pessoa carente, que precisa de colo, mas “não sabe chegar”. A relação com o pai continua distante, tal qual o contato com a mãe, uma mato-grossense a quem só foi apresentado aos 22 anos.
A cultura hippie lhe ensinou sobre o amor: ama os irmãos, inclusive aqueles que não conhece da parte materna. Ama a filha que mora em Itapevi com a ex-namorada. Ama tocar, conversar com os amigos, ler gibis e fumar um porro toda noite antes de dormir para relaxar. “Vivi, curti pra caralho e não deixo de comer ou beber o que tenho vontade.”
Ama, sobretudo, a liberdade. “É o que mais gosto em São Paulo.”
terça-feira, 22 de julho de 2008
Um casal para um Fusca *
terça-feira, 27 de maio de 2008
Sábado, 28 de maio de 2008, véspera da Parada do Orgulho GLBT. Dia de casamento. O espaço está enfeitado com arranjos de flores: rosas, margaridas, crisântemos, véu de noiva e dois cordões de folhas pequenas pregados nas pontas de cada uma das cadeiras, no final das fileiras, divididas em dois grupos. São 136 assentos pretos com estofados vermelhos.
No fundo do auditório há um palco que costuma receber dirigentes sindicais, mas, nessa noite, comporta uma mesa branca de uns dois metros de largura, sobre a qual colocaram um pão do tipo italiano, duas velas amarelas, uma bíblia aberta, um cacho de uvas, um arranjo com as mesmas flores do corredor e um Menorá, espécie de candelabro de sete pontas.
À direita do público que ocupa quase todos os assentos ficam três pedestais de microfones, os quais Luana Moreira, uma cantora de voz muito bonita e um piercing no lábio inferior direito, utiliza para ensaiar canções de louvor a Deus. Antes do início da cerimônia, os suportes iriam para a esquerda e dariam lugar aos noivos e ao pastor.
Perto da cortina preta atrás da mesa, mais dois arranjos de flores com o dobro do tamanho daqueles em cima da mesa e daqueles próximos ao corredor.
Os padrinhos e os convidados, a maior parte formalmente vestida, começa a chegar. Na porta, José Antônio, mais conhecido como Tony, e Ricardo, membros da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), distribuem o roteiro da cerimônia, que apresenta também uma breve história da entidade e a lista de parceiros que apóiam a celebração.
O panfleto traz, além do nome de parlamentares brasileiros e sindicatos, o Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades, a Associação da Parada do Orgulho GLBT em São Paulo e a Católicas pelo Direito de Decidir, “entidade feminista, de caráter inter-religioso, que busca justiça social e mudança de padrões culturais e religiosos vigentes em nossa sociedade, respeitando a diversidade como necessária à realização da liberdade e da justiça”, conforme define o release do grupo mais conhecido por defender a legalização do aborto.
Antônio comenta que alguns convidados confundiram-se com a presença da Igreja Nossa Senhora do Líbano, logo em frente, mas logo perceberam que o matrimônio para o qual foram convidados estava do outro lado da calçada.
Um telão de cerca de três metros começa a baixar do lado direito do público, esquerdo de quem está no palco. Mesmo com a decoração em tom primaveril, os quadros com imagens de assembléias e outros marcos do ramo químico permaneceram pendurados nas paredes do auditório do Sindicato dos Trabalhadores Químicos do Estado de São Paulo.
Às sete e quarenta da noite, com uma hora de atraso, a cerimônia começa. Primeiro, um vídeo que apresenta a ICM e destaca a trajetória do Reverendo Troy Perry. Nem primavera de Praga, nem maio de Paris. O que realmente aconteceu de importante em 1968 para aquele grupo de cristãos do segmento GLBTT que se reúne, pela primeira vez, para a celebração coletiva da benção de união de casais homoafetivos foi o nascimento, nos Estados Unidos da América, da Igreja da Comunidade Metropolitana.
Perry, homossexual norte-americano, acreditou, segundo o curta-metragem, no desejo de viver a mensagem de Jesus de forma a incluir. “Não há nenhum lugar no Evangelho em que Jesus tenha condenado a homossexualidade. Jesus veio e morreu por meus pecados, não por minha sexualidade”. Em silêncio absoluto, o público permanece atento ao vídeo do reverendo. Alguns homens, aconchegados no escuro da sala, encostam a cabeça no ombro dos companheiros. O mesmo acontece com um casal de mulheres, com tranças azuis nos cabelos. Ninguém olha abismado quando os casais se beijam ou passeiam de mãos dadas. No final, aplausos da platéia.
O orador pede a Beto de Jesus, representante da América Latina e do Caribe da Associação Internacional de Gays e Lésbicas e membro da direção da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, para subir ao palco. Após um selinho no homem que segurava o microfone, ele diz: “nos tiraram muitos direitos e um deles é nossa profissão de fé. Estar aqui hoje é dizer que Deus, os deuses, as deusas são nossos e não vão nos tirar isso.”
Odézia Rodrigues, da Rede Nacional de Religiões Afro Brasileiras e Saúde complementa: “eu venho de uma família católica, com tradição católica e senti na pele o que é preconceito. Tenho orgulho de encontrar as matrizes africanas, meu berço, meu axé”, disse, para depois falar sobre sua profissão e classificá-la como um ato de amor. “O amor ao próximo é saúde e quando lidamos com um enfermo não levamos apenas medicamento, mas também nossa vibração. Estamos aqui essa noite por amor.”
Às oito e vinte, após o DJ errar o fundo musical por duas vezes e colocar o início da Marcha Nupcial, os padrinhos descem a rampa íngreme do sindicato sob uma sinfonia que desconheço. O processo é rápido, dura menos de dois minutos e depois, novamente, a Marcha Nupcial toma o salão. Dessa vez, é a música certa.
No início da fila, Suzane Araújo, 39 anos, e Noemi Miranda, 47, caminham lentamente sobre um tapete vermelho, trajadas com vestidos da cor prata. O casal que se conheceu em uma sala de bate-papo GLS na Internet e está junto há três anos, segue logo após Clarice, 18, e Gabriel, 20, respectivamente, filha e genro de Noemi, mas, nesta noite, madrinha e padrinho das noivas, que acomodam-se na primeira fileira de cadeiras. Trouxeram também Arthur, o neto de seis meses de ambas.
Noemi foi casada durante três anos (parece um número cabalístico) e há 17 está divorciada. Ele é professora há uma década, enquanto Suzane estuda para ser esteticista. “A cerimônia de hoje serve apenas para formalizar, porque já moramos juntas”, diz Suzane. Clarice, a filha, comenta que nunca teve preconceito, que acha normal a mãe casar com uma mulher. “Isso é graças à criação que ela teve”, comenta Suzane, a mais extrovertida.
Ao lado de ambas, tanto Luiz Ramires e Guilherme Nunes, quanto Maria Venâncio e Marlene Sturari, os outros dois casais, permanecem de mãos dadas.
Com o sexteto à direita do auditório, o pastor Cristiano da Silva inicia o ritual. Entre agradecimentos a Deus (“damos-te graças porque esse amor foi capaz de vencer todas as barreiras”), ele comanda o evento. Há espaço, porém, para Yuri Orozco, apresentada como teóloga e feminista do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, encaixar mais um discurso. “Estamos aqui porque acreditamos que um mundo mais humano e justo é possível.”
Após a liturgia da palavra, Levi de Souza, um dos três cantores da noite, interpreta “Monte Castelo”, canção da Legião Urbana. “Um tempo sagrado e justo está começando. Celebramos as coisas boas da vida e hoje celebramos uma conquista: o amor de vocês”, retoma a palavra o pastor, que evoca justiça, importância do amor romântico e do divino. “Falaram que relações do mesmo sexo são pecaminosas. Não tocarás o divino! Deus nos criou para sermos livres e nos quer felizes. Hoje é tempo de rever nossos conceitos.”
Juras de amor. Chegou a hora de trocar alianças que chegam numa bandeja de prata decorada com flores, e prometer fidelidade na felicidade e na desventura, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença. Prometer amar e querer até o dia em que morte vier. Chegou a hora do noivo beijar o noivo e da noiva beijar a noiva. Chegou a hora de descobrir que Suzane e Noemi são tímidas e apenas tocam os lábios após incentivo do público presente.
Porém, para o pastor Cristiano Silva, o ápice de cerimônia é agora. Trata-se da última parte do ritual: a benção dos casais. A Reverenda Bispa Darlene Garner, então, faz-se presente diretamente do México. Coordenadora da região latino americana e da região do sul dos EUA da ICM, ele envia uma mensagem que o orador resume, “pelo adiantado da hora.”
Os noivos assinam o livro de registro de uniões da Igreja e, no alto falante, Elton John canta “Can You Feel The Love Tonight”, capaz de arrancar coreografias da platéia. Recém-casadas, Suzane e Noemi sobem para a quadra do sindicato, transformada em salão de festas. Levam numa mão um certificado e na outra um buquê, a sete dias do fim do mês das noivas. E dos noivos.
terça-feira, 29 de abril de 2008
Ainda há esperança para a cidade. Foi isso que percebi logo na madrugada de sábado (26), quando tive de circular pelas ruas de São Paulo e vi dezenas de pessoas, montes de famílias andando sem competição.
Na manhã de domingo (26), enquanto caminhava do meu apartamento, na Rua da Mooca, até o Centro o cenário era idêntico.
Uma bandeira do Flamengo pendurada na janela de um prédio decadente da Rua Carlos Garcia me fez lembrar que também era dia de Flamengo x Botafogo, primeira partida da final do Campeonato Carioca.
Uma quadra depois, outra bandeira, agora do Palmeiras, que o vendedor ambulante negociava no semáforo, também dizia que seria o penúltimo passo na caminhada do verde rumo ao fim da fila, contra o time da Ponte Preta, no primeiro jogo da final do Paulistão.
Meu destino era a Rua Canteira, entrada do Mercado Municipal de São Paulo, famoso pelos generosos sanduíches de mortadela. Dessa vez, porém, não fui para comer, até porque estava quase sem um puto no bolso. Ao menos até tatear a bermuda jeans preta e encontrar uma nota de R$ 5, perdida, que usei para comprar água e voltar para casa de metrô.
Parei, então, em frente ao palco “Mercado Caipira”, parte da Virada Cultural que começou às 18h do sábado e se estendeu até às seis da tarde do domingo.
Diante de um fundo preto, João Mulato e João Carvalho me lembraram o senhor Sílvio Corrêa de Carvalho, meu pai, cantando junto, com os olhos marejados, as músicas dos grupos que se apresentam no Viola Minha Viola, programa de TV de Inezita Barroso. Histórias de praças, bares, boiadas, opressão, solidão, amores. Acima de tudo, verdadeiros tratados de honestidade.
Vestido com terno e calça preta e camisa branca, o bigodudo Mulato, à esquerda, conforme reza a tradição – o primeiro nome da dupla fica sempre à esquerda – empunhava uma viola caipira e usava chapéu de boiadeiro. À direita, Carvalho, o ‘moderno’, vestia calça jeans e camiseta pretas e empunhava um violão de seis cordas. Nada mais, apenas dois instrumentos e duas vozes.
A platéia, ao contrário do que esperava, não era formada apenas por velhinhos, minoria diante dos jovens e quarentões casais munidos de celulares e máquinas fotográficas digitais.
O público parecia perplexo, hipnotizado diante de modas como a conhecida, “Chico Mineiro”, nome da canção mais famosa de Tonico e Tinoco. Quer dizer, famosa ao menos para mim que fui criado ao som de emissoras de rádio AM e locutores com Zé Bétio, do bordão “joga água no gordo”, e de vinhetas com sons de galinhas, vacas e outros animais.
Entre as cerca de 200 pessoas, uma chamou minha atenção. De segunda a sexta, Nélson Filho, de 46 anos, é um engravatado advogado da Companhia Energética do Estado de São Paulo (Cesp). Aos finais de semana, um caipira que nesse domingo vestia chapéu preto de caubói combinando com os cintos e as botas e camisa branca de mangas cumpridas da mesma cor da calça. Visual corajoso para o sol intenso e o céu azul paulistano daquela tarde.
Natural de Paraguaçu, cidade ao sul do estado de Minas Gerais, contou que já teve momentos de discoteca e funk (o de James Brown, não o carioca), mas “o contato com a música sertaneja remeteu-me à tradição, à raiz”, falou.
“Houve um momento, há sete anos, que fui buscar mais verdade. São Paulo estava meio cruel. Durante cinco anos morei num sítio em Embu Guaçú e conheci pessoas humildes, que montavam muito bem, tem bastante coragem e me trataram muito bem, mesmo antes de saber da minha profissão”, disse.
“Eram amansadores de cavalo, donos de loja muito humildes”, complementou, enquanto eu reparava em dois anéis de ouro distribuídos nos dedos anular e mindinho.
Nascido e criado no bairro do Limão, zona oeste de São Paulo, onde mora até hoje, conta que a influência musical veio do pai, também mineiro, que dançava catira e era Bastião na Folia de Reis.
Casado, ele tem cinco filhos - “como bom caipira e mineiro” – emenda rápido quando me surpreendo com a quantidade de rebentos. A preocupação, agora, é passar a ingenuidade, a beleza e a simplicidade para os herdeiros. “Eles não tem costume de sentar, ler, ir atrás da cultura. Nem é preciso ir tão longe, ele está por perto”, aponta em lamento tipicamente sertanejo.
Enquanto terminávamos de conversar, João Mulato e João Carvalho também encerravam o show, sob uma forte salva de palmas, que repetiu-se também com Jacó e Jacozito, Cacique e Pajé e Pena Branca, outros caipiras que acompanhei. Mulato agradeceu. “Parabéns à Virada Cultural por nos dar oportunidade de cantar para a gente sofrida e trabalhadora de São Paulo que merece esse lazer”.
Antes de deixar o lugar, resolvi tentar passar pela tenda que funcionava como camarim e abrigava Tinoco, responsável por apresentar algumas duplas. Emocionado, pedi um autógrafo em nome do meu pai e me empolguei ao contar a historia do meu velho, dos tempos em que ele trabalhava na roça, de como é fã de música caipira de raiz. Percebi que Tinoco exibia um sorriso meio amarelado, parecia não entender o que eu dizia. Foi então que Nadir, escudeira e esposa do ‘homem’ há 50 anos, me alertou-me de que um dos preferidos de meu pai não ouvia bem do lado esquerdo. Sem problema, mudei de ouvido e repeti tudo, do lado direito do sofá preto onde ele estava sentado.
A tarde do último domingo deixou-me uma certeza: ainda há esperança para a cidade dos caipiras, tanto aqueles em cima do palco quanto para os milhares que acordariam cedo na manhã do dia seguinte.
Parti com o coração feliz.
terça-feira, 22 de abril de 2008
Com uma das agências do Itaú atrás de suas botas e carabina, um posto de gasolina da Via Brasil à direita, uma loja do Mc Donalds à frente e o edifício Bandeirante Borba Gato, de 17 andares, à esquerda, ele observava, imóvel feito estátua, uma manifestação diferente no último dia 19 de abril.
Quem sabe em outros anos, no “Dia do Índio”, tenha lembrado dos feitos que alguns consideram heróicos. Certamente, não aqueles que o cercaram na manhã do último sábado, em plena Praça Augusto Tortorello de Araújo, em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo.
De pés descalços sobre a grama, aos 16 anos, Marcos Oliveira, freqüentador do sarau da Cooperifa, deixou o Largo Treze, também zona sul da capital paulista, para engatilhar poesia. Os versos deixaram claro ao monumento de Borba Gato, diante do qual o garoto se posicionou, que a imagem do ‘desbravador’, ao menos entre a meia centena de representantes de movimentos culturais daquele lado da cidade, não é das melhores: “Essa terra tem mil deuses / um deles que me conduz / essa terra tem canções e cantigas / mas o ouro dos brasões / veio abrir nossa ferida / essa terra é muito antiga / essa terra é muito antiga / repousa os pés na estrada / a cada passada / o nosso descanso / embalado pelo canto / em qualquer canto / desbravando os brasis / se as veias estão abertas / seremos a cicatriz.”
Antes de Oliveira, Binho, idealizador de um sarau que acontece no Bairro do Campo Limpo, abriu a artilharia por volta do meio-dia, após cumprimentar a todos com um bom dia em guarani, que começou a estudar com um catalão na região da Avenida Cerro Corá. Assim declamou: “Gasolinar mendigos, indígenas / é o barato da playboyzada / fuder com povos e países / numa canetada só / é o caro dos pais da playboyzada / a herança é um roubo (parafuseando).”
A ativista sócio-cultural Graça Cremon destacou: “Há algum tempo existe grande descontentamento em termos um herói como Borba Gato, com essa arma na mão, com essa proporção, na entrada de Santo Amaro. Em São Paulo, todas as rodovias, o Palácio do governo tem nome de referências da cultura opressora. O Brasil também é milenar, não temos apenas 500 anos. Queremos destacar também a cultura brasilista”, ressaltou ela, integrante de um movimento, segundo disse, sem coordenador, organizado, principalmente, via e-mails.
As acusações
Pesavam contra o réu, acusações de trabalho escravo de negros e índios, estupro de mulheres negras e índias, assassinato para obtenção de riquezas e poder e massacre de culturas nativas, tudo isso expresso no panfleto que chegava aos motoristas de ônibus e de automóveis parados em um semáforo próximo à praça.
Itamar Augusto, membro do Instituto das Tradições Indígenas (IDETI), organização paulista que surgiu em 1999, filmava tudo. “Não somos a favor de derrubar o monumento, mas queremos que saibam o que representa. Quais são nossos heróis? Você nunca vê a estátua de um índio num local privilegiado”, comentou.
Resolvi, então, observar Borba, apenas para tentar saber o que pensava sobre tudo isso, no alto do mosaico de pedras que o compõe. Notei apenas um ferimento em seu joelho esquerdo, porém, pelo que percebi, fruto do tempo, nada que tivesse sido causado pelos homens e mulheres de rostos pintados, que dançavam desengonçadamente ao som de Ceu, Mestre Ambrósio e outros nomes da MPB ‘moderna’ que habitualmente funciona como trilha sonora nos carros de som dos movimentos sociais.
Aos poucos, a imagem do bandeirante ganhava adereços como cartazes a seus pés. Um deles, marrom, pintado com caneta azul informava o que acontecia no local. Outro afirmava: “Eu converto ou mato o outro”. Como se fosse um desses homens-sanduíche do centro da cidade que vestem placas indicando, “vendo ouro”, uma garotinha de uns 10 anos trazia no peito, “somos todos índios”. Um dos mais interessantes, pendurado num arbusto no canteiro próximo à praça, lembrou outro desbravador paulista, o ex-prefeito, Paulo Maluf: “Estupra, mas não mata! Borba”. E por aí vai.
Findo o sarau, era vez da antropofagia. Em performance teatral, faltando quinze minutos para uma hora da tarde, a Companhia Antropofagia interpretou o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval”, disse ele, há sessenta anos.
Chegou, então, a hora do prato principal. Após distribuir três folhas que apontavam o papel da defesa e da acusação na encenação, Graça destacou para os dois lados: “vale o coro, todos são protagonistas”.
O juiz abriu a sessão: “Estamos aqui porque produtores culturais, ativistas e cidadãos da cidade de São Paulo de Piratininga querem questionar a história oficial e, a partir dessa ação reconstruir a história do povo nativo: o nosso povo!”.
Umas das fundadoras do PT e agora membro do PSTU, a atriz Dulce Muniz era uma velha índia que apontava os dados históricos sobre o etnocídio brasileiro. Ao lado dela, uma pequena intérprete representava os sobreviventes das aldeias brasileiras, tocando flauta, enquanto Dulce lembrava que o número de índios assassinados cresceu 61,4%, entre 2006 e 2007, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário.
Será que Borba pensou, “e ainda querem me julgar?”.
O promotor acusou e a defesa rebateu: “Povo ingrato! Povo Ingrato! / O acusado de fato / Merece trato de herói! / Tudo aquilo que constrói / Que o progresso traz de fato / Veio com esse cidadão / Que chamamos Borba Gato / Viu esse Pyndorama / Um lugar pra prosperar / Nos caminhos que abria / Riquezas a revelar / Pôs suas ordem na bagunça / Que considerou “geral” / E não digam que atuou / Para o bem de Portugal!” Seguem palavras de Dulce, do juiz, do promotor, novamente Dulce e, finalmente, o juiz decreta: “Quem decide aqui é o povo, isso é júri popular!”
Borba Gato já sabia da sentença: culpado! Entre as penas propostas pelo público, “fica condenado a viver como estátua, estagnada, deteriorando com o tempo, sob o cocô dos pássaros”. Teve quem propusesse colocar grades ao seu redor “para mostrar que gente rica que estupra, mata, rouba também pode ficar presa”.
Mais pragmático, Binho sugeriu que “o valor dos pedágios das avenidas que levam nome de jagunço fossem revertidos para as nações indígenas”.
Atingida por poesia, música e teatro, a obra que surgiu em 1960, pelas mãos do escultor Júlio Guerra, permaneceu intacta, sem marcas de pichações, depredações ou qualquer avaria.
Por fim, como não poderia deixar de ser, sambão e festa.