quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Flores sobre o túmulo

Por Luiz Carvalho (texto) e Marcio Brigo (imagens)

Caso o poeta realmente tenha razão, o Largo General Osório, na região do centro velho paulistano, é uma explosão de flores sobre o túmulo do samba. Não em sinal de nostalgia, mas numa sublime nota de resistência.

A esquina da Rua General Osório com a Rua dos Andradas, onde duas dezenas de pessoas se juntam às portas de um bar e em torno de cuíca, cavaquinho, bandolim, pandeiro e outros objetos que viram instrumentos de percussão, é um aperitivo antes do apogeu. E um exemplo de democracia. Na altura do número 98, do lado esquerdo, a placa indica Osório com ‘s’. Do lado direito, o endereço vira Ozório. Para evitar o embate, vamos pelo apelido: eis a Rua do Samba Paulista.

A nata do estilo musical se reúne todo último sábado do mês em apresentações conhecidas por já terem recebido quase todos os bambas da cidade e mesmo de outros estados. Sob uma tenda branca, em cima de um pequeno palco, embaixo de holofotes e cercado por grades de proteção, os 11 integrantes do Samba Autêntico, grupo de pesquisa sobre o samba paulista, ensaia antes de começar a edição de aniversário.
Seis anos e 72 encontros depois, o espetáculo não acontece mais em frente à loja de instrumentos musicais Redenção: em 2006, passou a fechar uma via no bairro Santa Ifigênia, paraíso de produtos eletrônicos. Partiu de uma platéia de 150 pessoas para reunir cinco mil perante a maior sala de concertos de música erudita da América Latina: a Sala São Paulo, no Complexo Cultural Júlio Prestes.

A regra e o mestre – “A nobreza gosta da música, mas não chega para ver e ouvir”, comenta Roberto Oliveira dos Santos, o Beto, integrante da UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), uma das responsáveis pelo evento. Egresso dos movimentos estudantil e sindical, ele define o encontro como uma roda com viés político, cultural e transformador. Econômico também. “Optamos pelo último sábado do mês porque todo mundo está duro”.

A preocupação, segundo conta, é fazer política cantando sambas de raiz, sem transformar o espaço em palanque. No intervalo para o descanso dos músicos, Beto e a direção da UNEGRO utilizam o microfone para lembrar à platéia, majoritariamente jovem e vestida para a balada, que a Rua do Samba é “radicalmente favorável às políticas de ações afirmativas, às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial para acabar com a centralização de renda”.

Ele não é sambista, então faz as vezes de mestre de cerimônias e ouvidor. Após receber reclamações do público feminino a respeito de letras machistas, resolveu conversar com os partideiros. O resultado foi a roda de samba das mulheres, que acontece em março. Ao menos neste mês elas é que mandam no terreiro.

A regra da rua é simples: velha guarda entra sem pedir, quando quiser, ao contrário dos novos compositores, submetidos ao crivo de Paulo Roberto Mateus, o Mestre Paulo, paulistano da Casa Verde e filho de um dos fundadores da Unidos do Peruche. Da mesma forma que Beto, Mestre Paulo tem um boné com o nome pintado. Diretor de bateria da Peruche, ele passou a integrar o grupo Samba Autêntico em 2003, quando o irmão caçula o convidou para dar moral ao projeto que engatinhava.

Roda do acarajé – São três horas da tarde do último final de semana de novembro e a música acaba de começar. Gerson Nascimento está vestido de acordo com a ocasião. Usa filá, tradicional chapéu africano, camisa com faixas horizontais vermelha e preta e as letras MPLA na altura do coração, sigla de um partido político angolano. Tudo isso para vender acarajé e algumas outras peculiaridades na Rua do Samba: cuscuz, bolo de mandioca, vatapá e xinxim de galinha, que acompanha arroz. O forte da barraca, porém, é o acarajé. Em média, comercializa cerca de 100, vendidos a R$ 4 cada.

A barraquinha do soteropolitano não tem concorrência. Ao seu lado estão uma de espetinho e mais seis de lanches como cachorro-quente.

Aos domingos, na feira da Praça da República, o figurino muda e ele se torna um típico baiano para turistas, com roupas brancas e demais apetrechos. Lá, vende sete tipos de comidas baianas e, neste caso, o acarajé perde a majestade, mas não o lugar no coração de Gerson.

Foi graças ao quitute que comprou um apartamento na Rua Aurora, depois de chegar a São Paulo na década de 1980, quando trabalhou registrado como caseiro no Itaim Bibi. Após três anos, viu que seu caminho era outro e passou a vender pastel e caldo de cana no bairro da Santa Cecília. Mas, o acarajé estava no sangue, tradição de mãe para filho, que botou em prática logo depois de ingressar no ramo da alimentação. No futuro, se Deus quiser, financiará um “negócio de portinha”, que atenda ao público durante a semana.
A outra roda – J. Guerra, o bar entre as duas versões de Osório, é um típico boteco das antigas: pouco espaço, torresmo exposto atrás do vidro, mesa na calçada e diversos sotaques. O único sinal de modernidade é o copo de plástico, para evitar prejuízo com a batucada e o tremelique da mesa.

João Correia é um cliente exemplar. Historiador carioca de 46 anos, ele tem cabelos compridos, barba comprida e umbigo no balcão. Apesar da carteira de ator profissional, trabalha desde sempre na informalidade, com coleta de dados para pesquisa e, atualmente, na elaboração de projetos sociais para adolescentes em situação de risco.

Quando comento que acho interessante ele não ter perdido o sotaque carioca em 26 anos de São Paulo, logo define: “Minha avó era cearense e deixou o nordeste aos 20 anos. Até o fim da vida não falava vermelho, mas sim encarnado”. Está explicado.

Filho de mãe militante do PT com pai militar (“um milico dos novos tempos, votou no Gabeira”), identificou-se mais com o espírito materno. “Sou um bicho vira-lata da rua, gosto de manifestações culturais na rua. Essa forma de expressão é mais autêntica e transformadora, na medida em que as pessoas passam a conhecer as origens e a própria cultura. Fico emocionado”, diz.

Correia prefere o boteco da Osório com a Andradas ao largo porque o primeiro lhe parece mais com o formato original da Rua do Samba. “No largo, a coisa é mais democrática porque mais pessoas participam, mas aqui na esquina é mais resgate, mais fundo de quintal. Lá é o Rio de Janeiro, glamuroso. Aqui é Niterói, a cidade sorriso”.
Em um ambiente multiétnico, mas predominantemente negro, uma mulher de pele alva, cabelos loiros e óculos escuros desaparece após a fotografarmos na calçada do J. Guerra. Descobrimos que Lúcia é seu nome, mas todos a conhecem como Gringa do Pandeiro. Com esse pseudônimo, a argentina morre de medo de seqüestro. “Talvez pensem que eu tenho euros”. Por isso, não revela o sobrenome e permite apenas que registremos o pandeiro, posto na altura do peito, junto à camiseta com a imagem de São Jorge. “É ‘mía’ alma”, define.

Apesar de viver há três décadas no Brasil, desde quando o marido engenheiro chegou a trabalho, conserva o sotaque castelhano. Aos desembarcar em território brasileiro, passou dois meses na capital carioca, antes de se estabelecer no bairro paulistano do Campo Belo, onde mora desde então. Professora aposentada de inglês e espanhol, formada em piano, sempre amou a música, especialmente o samba.

Gringa do Pandeiro carrega a paixão pelo apelido no pulso direito, repleto de calos. “Toco todos os dias. Às vezes uma hora, quando a dor na coluna ataca. Mas, se estou bem, são três, quatro horas, lá no fundo de ‘mío’ quintal do samba”, orgulha-se.

No largo ou no bar, a festa prossegue até lá pelas oito da noite e o cenário das imediações não muda. A escuridão se aproxima e o abandono dos prédios e das pessoas parece ficar mais evidente no caminho de volta para casa. Para o bem e para o mal, o samba, pai do prazer e filho da dor, não vai morrer. Desde que o samba é samba é assim.

4 comentários:

Lívia Cappellari disse...

que delícia, Lú! de ler e de ouvir...rsrsrs

Gringa Do Pandeiro disse...

Eu lí seu comentário equivocado sobre minha segurança pessoal (sequestro). Como não falo português muito bem, percebí que houve uma má interpretação da parte de quem me entrevistou. Já fazem seis anos que todos os Sábados vou tocar no mesmo lugar e se eu tivesse medo de ser sequestrada jamais o frequentaria. Tenho um grande respeito a todos os meus colegas que frequentam o lugar, que são pessoas de bem e tenho por todos um grande respeito, pois somos uma grande família.

0 disse...

Olá, Lúcia, "grinda do pandeiro", estou escrevendo para dizer que apoio o seu comentário, aprecio muito seu talento e também quero lhe parabenizar pela bela capa que você fez para um importante cd de samba.
Seu amigo.

Luiz Alberto Carvalho, 30, jornalista disse...

Nota: prezada Lúcia, obrigado por sua visita. Quando fiz referência ao sequestro, não foi um comentário, mas a reprodução da justificativa que você apresentou a mim e ao fotojornalista para não revelar seu sobrenome e não ser fotografada. Porém, deixarei registrada sua observação e lamento se houve uma má interpretação. Um abraço.